sábado, 6 de junho de 2015

Miguel Reale Júnior - Triste aniversário

- O Estado de S. Paulo

Em 6 de junho de 2005, dez anos atrás exatamente, a Folha de S.Paulo publicava entrevista do deputado Roberto Jefferson, então presidente do PTB, em que denunciava a existência do mensalão. Dizia o deputado ser o número elevado de cargos do PT a fonte geradora do mensalão, pois o “PT tem participação muito maior que a dos outros partidos da base. Tem 20% da base e 80% dos cargos”. Ao final da entrevista, explicava a razão de ser do mensalão, uma mesada de R$ 30 mil paga a deputados do PL, do PP e do PTB, pois era “mais barato pagar o exército mercenário do que dividir o poder. É mais fácil alugar um deputado do que discutir um projeto de governo. É por isso. Quem é pago não pensa”. O deputado ponderava que em 22 anos de mandato nunca vira isso acontecer no Congresso Nacional, sendo que em função desse mensalão se contaminou a base parlamentar.

Jefferson avisou ministros e o próprio presidente do que ocorria, mas só se estancou essa corrupção com a CPI dos Correios. O presidente Lula, nestes dez anos, a cada instante falou coisa diferente sobre o mensalão, indo das desculpas à negação geral do fato, mesmo após o trânsito em julgado da condenação imposta pelo Supremo Tribunal Federal.

Nestes dez anos, a política tornou-se caso de polícia, com prisões, condenações, algemas, delações, fuga e extradição, monitoramento por tornozeleiras eletrônicas. É consequência de se assumir o governo não para cumprir primacialmente um projeto de país, mas para usufruir o poder, ocupando todos os cargos disponíveis e criando novos para acomodar apaniguados. O poder deixa de ser meio para ser fim em si mesmo, preservado por via de corrupção e de larga distribuição de propina, com descontrole fiscal e mentiras deslavadas para iludir o povo visando a ganhar eleições.

Imaginava que a persecução penal aos líderes do PT no processo do mensalão refrearia a ganância, mas se montava, por trás, o petrolão. Instalou-se, então, clima de irresponsabilidade absoluta na administração, imperando a desordem bem própria da mentalidade de tirar o máximo proveito do poder.

Essa irresponsabilidade contaminou o campo delicado das finanças públicas, pois o governo federal - objetivando melhorar suas contas e criar um superávit fictício - contraiu empréstimos com as instituições financeiras públicas para pagamento do Bolsa Família, do programa Minha Casa Minha Vida, do seguro-desemprego, deixando de registrar como passivo essa despesa sem pagar por longo prazo.

O Relatório de Inspeção, para se ter ideia da grandeza dos empréstimos, indica ter o Departamento de Supervisão Bancária informado que ao final de agosto último a Caixa Econômica Federal registrou em seu ativo R$ 1.740,5 milhões em valores a receber do governo federal, de pagamentos relativos a programas sociais (Bolsa Família, abono salarial e seguro-desemprego). E esses empréstimos foram contraídos com bancos públicos sem satisfação da dívida anteriormente assumida, efetivando estes mútuos no último ano do governo em afronta, em tese, ao descrito nos artigos 359 A e 359 C do Código Penal.

Em vez de o governo conter gastos, reduzir ministérios, eliminar cargos em comissão na administração direta e especialmente indireta, atacar a corrupção, ter transparência, valeu-se dos empréstimos contraídos com bancos dos quais a União é controladora, sem registrá-los como despesa, para vender gato por lebre, fazendo crer ao Legislativo, ao Tribunal de Contas, ao País que as contas públicas estavam sob controle e garantindo o crescimento econômico em 2015 com contenção da inflação. Essas deslavadas mentiras levaram a ganhar a eleição e agora à estagnação, à forte restrição do crédito, ao fim das desonerações, ao aumento dos preços, à redução das verbas da educação e da saúde.

Houve pedaladas em 2013, 2014 e neste ano também, mas nada proíbe que se instaure processo por crime comum contra a presidente por ações ocorridas no mandato passado se não estranhas às suas funções (artigo 86, § 4, da Constituição), sendo essas ações exatamente próprias funções presidenciais.

Além de a lei, a doutrina e a jurisprudência indicarem como responsável pelos crimes contra as finanças públicas o chefe do Executivo, cabe lembrar que a presidente da República, economista por formação, sempre demonstrou, enfaticamente, coordenar as decisões no campo das finanças.

Ademais, um dos maiores responsáveis pelas operações de crédito, o secretário do Tesouro Nacional, mantinha reuniões quase diárias com a presidente da República, cuja fama de rigorosa controladora da administração era e é famosa em Brasília, tanto que em tom de blague se diz ser fácil saber o nome dos 39 ministros: Dilma, Dilma... Evidentemente a presidente não pode alegar que medida de tamanha importância e tal valor tenha sido tomada sem seu conhecimento e sua anuência, pois cabe mesmo à presidente da República, de acordo com o artigo 85 da Constituição, a fixação de metas, a afetação dos recursos, a escolha dos procedimentos.

Assim, um dos caminhos para estabelecer a responsabilidade pela irresponsabilidade na condução das finanças públicas, que hoje todos sofrem, é o pedido de instauração de ação penal ou, no mínimo, de investigação criminal. Enviada acusação ao Supremo Tribunal, cabe a este consultar a Câmara dos Deputados se autoriza o processo. Autorizado, a presidente é afastada por 180 dias. O efeito é o mesmo do impeachment, sem ter de passar pela decisão monocrática do presidente da Câmara, que já arquivou, de plano, 30 pedidos de afastamento da presidente.

O caminho escolhido exige serenidade, visando a apurar a responsabilidade criminal da presidente por fatos cuja gravidade independe de qualquer viés político, pois já reconhecidos pelo Tribunal de Contas. Rodrigo Janot agora estuda a questão.

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*Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça.

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