sexta-feira, 31 de julho de 2015

André Lara Resende - Corrupção e capital cívico

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

• Há quem escolha não levar vantagem mesmo na ausência de punição para o comportamento incorreto. Referências culturais contam

• Mais do que cálculos de custos e benefícios, são os valores da comunidade que restringem, ou não, nossa propensão às práticas desonestas

• A impressão de que a desonestidade impera ajuda a racionalização do comportamento desonesto. Se todos são, ninguém é

A extensão e a profundidade da corrupção no Brasil atual causam perplexidade até aos mais calejados observadores. Sempre fomos complacentes em relação às pequenas transgressões, sempre houve corrupção, aqui como em toda parte, mas é o caso de perguntar: como foi possível chegar a um tal nível de desonestidade institucionalizada? A gravidade da situação paralisa a política e a economia. Ainda não está claro como sairemos da crise e o que virá a seguir. Espera-se que o país mude para melhor, que a exposição da corrupção na vida pública e empresarial, com a condenação dos envolvidos, reduza a corrupção. O fim da impunidade é fundamental para reduzir a criminalidade.

Gary Becker, da Universidade de Chicago e ganhador do Nobel em economia, foi o primeiro a utilizar o arcabouço conceitual da microeconomia, com agentes racionais que maximizam utilidade, para entender o processo de tomada de decisão em questões não especificamente econômicas. Seus trabalhos pioneiros procuravam explicar a tomada de decisão em relação a questões como quantos anos estudar, qual o melhor momento para se casar e quantos filhos ter. Segundo Becker, todo comportamento humano pode ser entendido como uma avaliação de custos e benefícios. A decisão de cometer um crime depende do que se tem a ganhar, comparado ao custo do castigo ponderado pela probabilidade de ser pego. Se o benefício for maior do que o custo estimado da punição, opta-se pelo crime. Simples assim. O modelo tem enorme apelo, exatamente por ser simples, lógico, e dar sugestões claras sobre a prevenção do crime: deve-se aumentar a probabilidade de que o criminoso seja preso e endurecer as penas.

Feliz ou infelizmente, as coisas não são bem assim. Os avanços da psicologia comportamental demonstram que nossa tomada de decisão é mais complexa, não se restringe a um cálculo de racionalidade econômica. Bastam alguns segundos de reflexão para concluir que ao longo da vida, mesmo durante um único dia, temos inúmeras possibilidades de ser desonestos, com baixíssima probabilidade de ser pegos. Nem por isso somos sistematicamente desonestos. Ao contrário, o padrão do ser humano é ser honesto, respeitar a lei e os códigos de ética da sociedade. A desonestidade, ao menos a desonestidade consciente e deliberada, é a exceção.

Os trabalhos recentes de Dan Ariely, professor da Universidade de Duke, nos EUA, chegam a resultados interessantes e até certo ponto surpreendentes em relação à desonestidade. A partir de experiências, muito engenhosamente formuladas, com diferentes grupos de pessoas, a maioria delas alunos universitários americanos, Ariely conclui que a desonestidade não é uma questão de custos e benefícios. Seus experimentos mostram que não há relação entre o valor do que se tem a ganhar e a desonestidade num grupo. Também não há relação entre a probabilidade de ser pego e a desonestidade. São resultados que contradizem frontalmente a teoria do cálculo racional como fundamento para a opção pela honestidade ou pela desonestidade.

É claro que não se é de todo insensível aos custos e benefícios da desonestidade. Especialmente os desonestos contumazes, aqueles que fazem da desonestidade um meio de vida, levam em conta os riscos associados à atividade. Mas para a maioria das pessoas, que se percebem como honestas, não se trata de um cálculo racional. Estamos todos dispostos a incorrer em pequenas infrações, pequenas desonestidades, desde que as consideremos suficientemente irrelevantes, para não arranhar nossa percepção de que somos honestos. Queremos nos perceber e ser percebidos como pessoas honestas, mas estamos dispostos a transgredir, desde que a transgressão nos permita manter a autoestima.

Os estudos mostram que as pessoas são menos desonestas quando são lembradas das leis ou dos códigos de ética. O grau de desonestidade depende daquilo que é percebido como flagrantemente desonesto, assim como do grau de tolerância em relação à desonestidade. Onde as infrações de trânsito, como estacionar em local proibido, circular pelo acostamento, são comuns e disseminadas, quem as comete não se percebe como desonesto. Por isso mesmo, são mais frequentes.

A propensão a agir incorretamente depende também da nossa capacidade de racionalizar. Se formos capazes de justificar a desonestidade, somos muito mais propensos a agir de forma inapropriada. Isso vale tanto para atos mais corriqueiros de incorreção, como também para os mais graves. Roubos, assaltos, até mesmo assassinatos, podem ser cometidos de forma fria, por pessoas que se consideram honestas, desde que em nome de uma causa. O caso de políticos que roubam para o partido, ou para financiar campanhas eleitorais, nunca para o seu enriquecimento, é exemplar da necessidade de racionalização. Os estudos mostram que, quando a desonestidade pode beneficiar pessoas do nosso grupo, ou até mesmo desconhecidos, a propensão à desonestidade aumenta. Uma vez encontrada a justificativa nobre, a racionalização, é possível ser desonesto e manter a autoestima. É o efeito Robin Hood, mas, uma vez rompida a barreira psicológica, passa-se mais facilmente para a desonestidade aberta. Quando passamos a nos ver como desonestos, perde-se o pudor. Se este for o comportamento disseminado entre nossos pares, tudo se torna ainda mais natural.

Queremos ser honestos, mas a propensão para a desonestidade está em todos nós. Mais do que um cálculo de custos e benefícios, o que nos restringe são os valores de nossa comunidade. Se no meio em que vivemos a incorreção é aceitável, insuficiente para arranhar nossa percepção de que somos honestos, somos mais propensos à desonestidade. Essa é a razão pela qual povos diferentes se comportam de forma diferente, ainda que diante dos mesmos incentivos e riscos em relação a um comportamento questionável.

Uma história curiosa, triste para nós, brasileiros, ilustra bem como há comportamentos distintos diante da certeza da impunidade. Até alguns anos atrás, a lei dava aos diplomatas estrangeiros, lotados nas Nações Unidas, a isenção de pagamento das multas de estacionamento na cidade de Nova York. A cidade, porém, nunca deixou de emitir as multas. Como não precisavam ser pagas, não havia sanção para os diplomatas que estacionassem em locais proibidos. Um estudo mostrou que, ao longo de cinco anos, os diplomatas suecos e canadenses não tiveram multas, os alemães tiveram uma multa per capita, os italianos 15, e os brasileiros 30 multas por diplomata. Se serve de consolo, a média dos diplomatas kuaitianos foi de 246 multas.


A certeza da impunidade não leva todos a ser desonestos. A referência cultural conta. Os diplomatas suecos não são menos racionais do que os brasileiros, mas optam pela correção. Optam por não levar vantagem, mesmo quando não há punição para o comportamento incorreto. Há algo na cultura de certos povos, que se poderia chamar de capital cívico, que faz a diferença. Na definição dos que cunharam o termo, capital cívico é o estoque de crenças e valores que estimulam a cooperação entre as pessoas. Os entusiastas dos mercados não se cansam de defender a importância da competição e da meritocracia, mas os que entendem do riscado sabem que na base de uma economia de mercado, antes de tudo mais, estão a confiança e a cooperação. Vale a pena ouvir o que tem a dizer a respeito Kenneth Arrow, prêmio Nobel de economia. Seus trabalhos, em parceria com Gerard Debreu, formalizaram o chamado modelo de equilíbrio geral, do qual são deduzidos os corolários de eficiência dos mercados competitivos: "Virtualmente toda transação comercial tem em si um elemento de confiança. Pode-se dizer, de forma plausível, que muito do atraso econômico no mundo deve-se à falta de confiança mútua".

Nas sociedades em que o capital cívico é baixo, impera o que Edward Banfield, que foi professor da Universidade de Harvard, chamou de " amoralidade de laços familiares" 2. Com base em sua experiência num vilarejo do sul da Itália, Banfield procurou entender as razões do atraso da região. Concluiu que a resposta estava na obsessão com que os habitantes se dedicavam exclusivamente aos interesses de suas famílias. Incapazes de cooperar, até mesmo com os vizinhos, os camponeses restringiam-se ao cultivo de suas pequenas propriedades. Ficavam assim impossibilitados de se beneficiar dos ganhos de produtividade da escala e da cooperação. Esse tipo de comportamento se auto-reforça, pois onde todos desconfiam de todos e só estão preocupados com seus próprios interesses, a desconfiança tem razão de ser. Não se pode superestimar a importância da confiança nas relações econômicas e sociais. A confiança importante para o bom funcionamento da sociedade é a confiança nos desconhecidos. É a confiança naqueles que não conhecemos pessoalmente que permite estabelecer contatos, desenvolver os mercados e a cultura.

Em pesquisas sobre valores e atitudes em diferentes países costuma-se perguntar aos entrevistados se a maioria das pessoas merece confiança ou se, ao contrário, é preciso tomar cuidado ao se relacionar com elas. Mais uma vez o Brasil fica mal na fita. Enquanto na Suécia quase 70% dos entrevistados respondem que os outros são dignos de confiança, no Brasil, menos de 10% consideram que as pessoas são confiáveis. É sempre possível argumentar que os brasileiros confiam menos nos outros porque a Justiça é falha, há menos possibilidade de ser punido e, logo, todos são efetivamente mais propensos a ser desonestos. Haveria assim uma lógica no fato de por aqui se confiar menos nos outros, estaríamos de volta à racionalidade do modelo de Gary Becker.

Acontece que a confiança nos outros, o grau de confiança básica, difusa numa sociedade, não é simples consequência do bom funcionamento da Justiça. Há, com certeza, correlação entre as duas coisas, mas o sentido da causalidade não é claro. Assim como a Justiça eficiente contribui para a confiança, mais confiança leva ao melhor funcionamento da Justiça. A confiança e a propensão a cooperar não decorrem exclusivamente dos mecanismos legais de prevenção e punição da desonestidade. São traços culturais, forjados ao longo da história, reforçados pela experiência de cooperação bem-sucedida. Constituem um ativo de longo prazo, que não se adquire da noite para o dia. Como todo traço cultural, são preconceitos, tanto positivos quanto negativos, que não são facilmente revistos. Um exemplo da longa inércia a ser vencida para a acumulação do capital cívico, da persistência das feridas na confiança entre membros de uma sociedade, para o qual Luigi Zingales chama atenção1, é o fato de que, até hoje, mais de um século e meio depois do fim do tráfico de escravos, há significativas diferenças entre as etnias na África. Aquelas que tiveram pessoas capturadas e traficadas como escravos, muitas vezes por membros de suas próprias tribos, até hoje desconfiam de tudo e todos.

"A construção do capital cívico é um longo percurso. A confiança e a capacidade de colaborar, assim urdidas lentamente no decorrer da história, podem ser muito rapidamente destruídas. Uma vez perdidas, é preciso recomeçar do zero, refazer toda a longa história de acumulação de capital cívico, de confiança e de cooperação. Não é fácil, pois a desconfiança leva à desconfiança, e termina por justificar a falta de confiança. É um círculo vicioso duro de ser rompido. A melhor forma de fazer evoluir o capital cívico é não permitir que se deteriore.

A forma como a população avalia o Estado e suas instituições é uma boa aproximação do capital cívico. Onde o capital cívico é alto, o Estado é visto como um aliado confiável. Onde o capital cívico é baixo, o Estado é percebido como um criador de dificuldades para todos e de vantagens para seus ocupantes. Mais uma vez, o processo é do tipo que se auto-reforça.

Se o Estado é percebido como ocupado por desonestos pautados por seus próprios interesses, os bem intencionados evitam a vida pública, o que termina por dar razão à desconfiança. Dada a visibilidade dos políticos e a necessidade de se lidar cotidianamente com as autoridades, o Estado corrupto é um poderoso fator de erosão do capital cívico. Nada mais corrosivo da confiança e do espírito público do que a exposição diária a um Estado ineficiente e patrimonialista.

Assim como o mau Estado destrói o capital cívico, as boas instituições são imprescindíveis para sua preservação. Os estudos de Ariely sugerem que o grau de desonestidade de uma comunidade tem características parecidas com a de uma infecção. A desonestidade pega e se alastra. Basta que uma única pessoa se comporte de forma flagrantemente desonesta para que o grau de desonestidade de um grupo de alunos universitários, submetidos às suas engenhosas experiências, aumente significativamente.

Se uma única pessoa, um desconhecido, é capaz de aumentar a desonestidade dos demais num grupo de universitários, fica claro que a desonestidade dos governantes tem grande impacto sobre o grau de desonestidade do país. Existe um "efeito demonstração" da desonestidade, sua capacidade de se alastrar e de infeccionar a sociedade como um todo. Esta é a razão pela qual é importante reduzir a frequência dos pequenos atos de transgressão, das pequenas desonestidades aparentemente inofensivas. A política de "tolerância zero" em relação ao pequenos delitos, adotada pela polícia de Nova York, contribuiu para a dramática redução da criminalidade na cidade. Pequenas infrações podem parecer inócuas, mas contribuem para criar o ambiente propício às mais graves.

Anos atrás, quando eu ocupava um cargo público, um político com quem eu tinha relações próximas queixou-se comigo da corrupção de pessoas ligadas à sua área. Sugeri que ele fizesse uma denúncia pública. Disse-me que jamais faria isso, porque o impacto para o descrédito da política seria gravíssimo. Intuitivamente, ele estava dando expressão ao efeito demonstração. É evidente que o argumento era falacioso, uma racionalização para não se sentir compactuando com a corrupção sem incorrer nos custos de denunciar seus pares. A concordar com ele, para evitar a contaminação da sociedade, toda sujeira deveria ser empurrada para debaixo do tapete. Isso não significa que não haja uma contradição a ser resolvida: para reduzir a desonestidade, não se pode esconder a corrupção, mas sua divulgação, através do efeito demonstração, contribui para o aumento da desonestidade.

A condenação dos envolvidos na operação Lava-Jato deverá reduzir a percepção de impunidade. De acordo com o modelo de racionalidade da desonestidade, haverá menos pessoas decididas a correr o risco. Para os que já cruzaram a barreira, não há dúvida: pensarão duas vezes antes de retomar as práticas a que estavam habituados. Mas, para a grande maioria da população, para os que prezam a honestidade, que não se baseiam num cálculo racional de custos e benefícios, o efeito demonstração terá um impacto negativo. A impressão de que o governo, os políticos e os empresários são desonestos aumenta a tolerância com a desonestidade no dia a dia. Nas inúmeras pequenas oportunidades em que é possível transgredir sem ser punido haverá maior propensão à desonestidade. A impressão de que a desonestidade impera ajuda na racionalização do comportamento desonesto. Se todos são, ninguém é. Por isso é importante ir até o fim, não deixar a impressão de que só alguns foram punidos, que os mais espertos, como sempre, escaparam.

Infelizmente, ainda assim, não é inequívoco que o capital cívico do país sairá fortalecido da crise. É sempre possível que o impacto negativo do efeito demonstração domine o impacto positivo do fim da impunidade. Essa possibilidade é reforçada por mais um interessante resultado dos estudos de Ariely. Quanto mais cansados, desanimados e deprimidos estamos, mais propensos somos a ser desonestos. A honestidade aumenta a autoestima e a baixa autoestima aumenta a desonestidade. A recessão econômica e a depressão psicológica contribuem para o aumento da desonestidade.

Para que o país saia melhor de tão grave e deprimente surto de desonestidade, para que não passe à infecção generalizada, é importante condenar e punir os culpados. Sem dúvida, mas não basta. É preciso, o quanto antes, sair da crise, expurgar da vida pública os envolvidos, recuperar a economia e dar início a uma nova era. O que exigirá, antes de mais nada, novas e exemplares lideranças, ainda longe de estar evidentes.

(1) L. Zingales, P. Sapienza, L. Zingales, "Civic Capital as the Missing Link", NBER working paper 15845. Março de 2010. Citado em L. Zingales, "Capitalism for the People: Recapturing the Lost Genius of American Prosperity", Basic Books, 2012.

(2) E. Banfield, "The Moral Basis of a Backward Society", The Free Press, 1958

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André Lara Resende é economista

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