terça-feira, 28 de julho de 2015

Angela Alonso - Procuram-se líderes

Valor Econômico

• Atirador de pedras em 1992, PT agora é notória vitrine

Explicar é, muitas vezes, reduzir o novo ao conhecido. A conjuntura política brasileira vem sendo lida assim, com remissão a dois outros contextos de crise, ainda nítidos na memória das gerações mais velhas e algo edulcorada na dos que ingressam agora na política.

Uma conjuntura é relativamente recente, a do impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992. Há quem veja paralelismos entre o que se passa e o que então se passou: a crise econômica, a baixa popularidade de presidente em início de mandato e sua incapacidade de comandar a base governista no Congresso.

E, embora o protagonista seja distinto, há vários personagens repetidos. Encontram-se, porém, em posições invertidas. Caso de Aloizio Mercadante, que se esmerou em levantar provas de corrupção contra Collor e companhia, e que neste momento opera como bastião do governo. O PT, que, numa grande revanche da derrota eleitoral de 1989, foi o maior atirador de pedras em 1992, ora comparece como notória vitrine.

Quem também trocou o lado foram Renan Calheiros e Eduardo Cunha. O primeiro ascendeu na carreira, catapultado por sua intimidade com Collor e conseguiu proeza de tirar o chapéu: sobreviveu politicamente ao escândalo de 1992 e à crise que o removeu da presidência do Senado em 2007, para conseguir se abancar de volta no comando da mesma casa legislativa, de onde se lança a fiador das instituições nacionais. De Cunha já se falou tanto, que mal sobra o que dizer, mas não custa lembrar que um ponto alto de seu currículo foi a função de aprendiz de feiticeiro de PC Farias, o operador da rede de corrupção no entorno da administração Collor.

Se os personagens adotaram novos papéis, o drama se afigura distinto. Dilma está no fundo do poço, mas não é Collor. Tem um partido forte, enraizado, o que Collor não tinha. E, pelo menos por enquanto, conta com apoio da maior parte dos governadores. O que falta a Dilma, como faltou a Collor, é o massivo apoio das "ruas".

Nisso a conjuntura atual reverbera outra, a do pré-golpe de estado de 1964. A analogia apareceu até no Zorra Total, programa humorístico de grande audiência, na noite do último sábado. Por razões que a razão desconhece, o show, até então politicamente insosso, pôs a boca no trombone e o dedo na ferida. Simulando os festivais de MPB dos anos 1960, apontou homologias entre protestos de hoje e os que antecederam o golpe de 1964: a ojeriza dos "coxinhas" aos socialmente ascendentes (a "classe C"), a adesão ao modelo norte-americano de consumo (a elite social promete fugir para Miami, se perder a luta política), a reabilitação dos militares como guardiões da ordem social.

O que os humoristas deixaram de apontar talvez seja a maior afinidade entre os dois contextos, a polarização política. O clima de tudo ou nada, a radicalização de posições, que se prolonga além de debates sobre questões institucionais. Está, por exemplo, nas paixões exacerbadas no que toca à moralidade pública - a segurança dos "cidadãos de bens" contra "meliantes de menor", a liberdade sexual versus os bons costumes -, noutra coincidência com os anos 1960.

Esta simplificação extrema da política dificulta a negociação de saídas para o impasse. Nem mesmo a conversa entre dois ex-presidentes, que há pouco parecia a normalidade de uma democracia civilizada, cogita-se como possível.

Os contextos de crise política são propícios para o nascimento ou a consolidação de lideranças. Até aqui esta crise malogrou em parir líderes nacionais. Ao contrário, como apontei acima, repete personagens. A elite política brasileira denota dificuldade de se renovar. Nos grandes partidos, PT, PSDB, PMDB, os donos da bola são os que estão em campo desde o fim da ditadura - ou, no máximo, seus filhos e netos, como Aécio Neves.

Os jovens que chegam agora à política parecem surdos aos chamados desta velha geração e insubordinados ao seu comando. Desde que se tornou governo, o PT viu mobilizações mais à esquerda irem fugindo da sua zona de influência, como em junho de 2013, e o principal partido de oposição, o PSDB, não soube, não pôde, ou não conseguiu se assenhorar das manifestações de março de 2015, que tenderam à direita.

De seu lado, o PMDB, que tanto relevo teve noutra crise, a da redemocratização, fala por vozes bem menos respeitáveis que a de Ulysses Guimarães. Eduardo Cunha tentou, como Collor em 1992, puxar para si o comando das ruas. Seu pronunciamento na TV, entretanto, mostrou que o passado de radialista em nada o habilitou para as outras mídias. Como Collor, Cunha não achou o povo - e nem sequer o teleprompter.

Agosto promete ser de mau agouro para o governo. Agendam-se manifestações pró-impeachment. Serão grandes? Inexperientes em organizar protesto, assunto no qual o PT tem doutorado, os novos manifestantes podem encontrar o mesmo anti-clímax do pronunciamento de Cunha. Mas ainda se entrarem para o rol dos gigantescas, como os de junho de 2013 e os de março de 2015, as manifestações carecerão de parte do enredo, crucial no Fora Collor: os nexos entre a mobilização popular e o sistema político. Não há à vista líderes que transitem bem nas duas arenas e funcionem como ponte entre elas.

Por isso, pode ser que os protestos, ainda se enormes, tragam seu presságio também para a oposição, à qual falta, como ao governo, uma varinha mágica para dirigir o descontentamento. Junho de 2013 atesta que manifestações de rua desconectadas de instituições e partidos podem se voltar contra todos os políticos. O feitiço pode acabar vitimando o aprendiz de feiticeiro.
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Angela Alonso é professora livre-docente de sociologia da USP, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

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