sexta-feira, 17 de julho de 2015

Cristian Klein - Fingimento

- Valor Econômico

• Dilema do PSDB é não poder fingir tanto quanto PMDB

Em 2002, o jogador de futebol Marcos André Batista Santos, mais conhecido como Vampeta, surpreendeu a torcida de um grande clube brasileiro ao justificar a má fase do time. "O Flamengo finge que me paga, e eu finjo que jogo".

Para quem não se lembra, Vampeta é o mesmo que rolou pela rampa do Palácio do Planalto, em quatro cambalhotas seguidas, durante cerimônia de entrega de medalhas à Seleção que acabara de conquistar o pentacampeonato na Copa do Mundo do Japão/Coreia.

O presidente de então não era Lula. Era Fernando Henrique Cardoso. Mais tarde, o jogador fanfarrão diria que se fosse o petista a ocupar o palácio, o presidente teria rolado junto com ele.

Hoje, os tempos são outros. Lula está é enrolado - desde ontem passou a ser alvo de um inquérito pelo Ministério Público Federal do DF -, o Planalto tenta explicar como ocorreram - não cambalhotas - mas pedaladas fiscais, e a Seleção Brasileira, em vez de orgulho, dá vexame.

O clima não é de comemoração. A recessão econômica chega ao fundo do poço. A Operação Lava-Jato dá um justo esfregão em políticos e empresários, embora às custas de atrapalhar a recuperação da economia. E a recessão política leva a presidente da República a ficar refém de uma base nada aliada no Congresso.

Numa espécie de homenagem ao volante pentacampeão, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, se sentiu à vontade para escancarar a relação esgarçada, ontem - mesmo dia em que um delator o acusou de receber US$ 5 milhões de propina em contratos da Petrobras: "O governo finge que tem maioria, e a maioria finge que é governo".

Se, nos campos, o mau desempenho foi justificado pela falta de pagamento de salários; nos plenários do Congresso, as queixas são de emendas parlamentares represadas e nomeações para cargos à espera. À dívida do clube corresponde o déficit de popularidade da presidente. As derrotas se sucedem.

As diferenças também são marcantes. O jogador atuava apenas o suficiente para sustentar perante a torcida o teatro que ele próprio desmontou. Para Cunha, o espetáculo da base aliada é artifício que lhe torna o diretor de um drama. Uma encenação é baseada no corpo-mole; a outra é forjada no corpo duro, rígido, dos diversos interesses individuais e partidários que se elevam contra o Executivo fraco.

O fingimento de Cunha é sinal da quase crise institucional. A sorte de Dilma é que o trunfo do deputado e do PMDB fisiológico é ancorado na elasticidade para fazer barganhas. Há poucas convicções. No relativismo extremo, tudo pode ser negociado. O preço para Dilma é que ficou mais alto - ainda mais com a Lava-Jato.

Trata-se de uma peça bem distinta da interpretada, na oposição, pelo PSDB. Para o bom ou mau presságio do governo do PT, os tucanos se dividem em atuações que exigem menos nuances. Não dá para representar dois personagens ao mesmo tempo. Que papel o partido deve ter, nas votações do Congresso, é o que está em jogo nestes dias. Mais programático que o PMDB, o PSDB vive o dilema de ser coerente com sua trajetória - sob pena de não fustigar os petistas. Ou de apoiar propostas que contradizem seus princípios - para que derrotem o governo a qualquer custo.

Não dá para fingir - como fazem os pemedebistas, que ora descem a rampa de cambalhota, ora a sobem com baionetas. Ora são bobos da Corte, com sorriso colorido para a rainha, ora tramam nos corredores do poder. É a velha estratégia de morder e assoprar. Bem verdade, as mordidas tornaram-se muito mais frequentes e doloridas desde que Cunha se assentou na cadeira da presidência da Câmara.

Nesse cenário, é um alento para o governo federal quando figuras influentes no PSDB, como o ex-presidente do Banco Central, Arminio Fraga, resolve criticar a incoerência da legenda, a exemplo do que faz em entrevista publicada nesta edição. Em votações recentes, a bancada tucana na Câmara apoiou o fim do fator previdenciário - criado por FHC - e a extensão das regras de reajuste do salário mínimo para os benefícios da Previdência. Isso jamais teria acontecido se os deputados fossem do partido do presidente. Como não são, empurram os ônus para o governo e jogam para a plateia.

A política, como toda arte, nem sempre é boa. Mas pode agradar aos espectadores. Ciente disso, outro influente economista ligado aos tucanos, Edmar Bacha, um dos pais do Plano Real, defende a atuação da bancada do PSDB. Diferenciando-se e derrotando o PT - mesmo que com posições contraditórias - o partido reforça sua marca de líder da oposição. A visão A (Arminio) e a visão B (Bacha) são duas abordagens para dilemas que questionam se os fins justificam os meios. Resultam de convicções. A visão A dá mais tranquilidade ao ajuste fiscal. A visão B favorece o que a ciência política costuma chamar de identificabilidade. E pode acossar um governo acuado.

Resta saber se as palavras do ex-presidente do BC vão afetar de alguma forma o comportamento parlamentar do PSDB. A declaração de Arminio, de que não estaria mais disposto a ser ministro da Fazenda em eventual governo tucano, sugere distanciamento. O partido, de fato, mudou. Está mais aguerrido do que nunca.

O fim do superciclo do PT - que completará 16 anos no poder, caso Dilma chegue ao fim do mandato - suscita reposicionamentos.

O PMDB também faz sua inflexão. Suas ações parecem sempre envolver dissimulações, blefes, mas a própria emergência de Cunha na Câmara é sintoma de tempos diferentes. O lançamento de candidatura à Presidência, depois de 24 anos, tende a ser um pouco mais viável.

Mas, num partido com tanta encenação e caciques com interesses regionais, nem mesmo um possível ungido para concorrer pode confiar na lealdade dos correligionários. Corre-se o risco de se chegar à situação em que o partido finge que apoia, e o candidato finge que disputa. Que o digam Ulysses Guimarães e Orestes Quércia.

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