sábado, 4 de julho de 2015

Demétrio Magnoli - O inferno não são os outros

- Folha de S. Paulo

• O "Sim" grego é um "Não" ao muro mental que sobreviveu à queda do muro real. Brindemos a ele

Amanhã, tudo indica, os gregos dirão "Sim" à Europa --e, portanto, "Não" ao seu governo. O resultado não solucionará os problemas da Grécia, nem ocultará o dilema de uma Europa imobilizada entre Cilas e Caríbdis, os penedos da economia (a união monetária) e da política (a soberania fiscal nacional). Mas, ao menos, o "Sim" equivale à rejeição da narrativa de que o inferno são os outros.

O impulso humano de atribuir aos outros a responsabilidade pelos próprios fracassos ganhou uma duradoura encarnação política com a teoria leninista do imperialismo. Nossa pobreza decorre da exploração promovida por gananciosos estrangeiros --numa casca de noz, eis a teoria do imperialismo. Há anos, o Syriza e outros partidos da esquerda europeia culpam a Alemanha pelo incapacitante endividamento de seus países. O rosto de Angela Merkel, acrescido de um bigode à la Hitler, tornou-se um clássico das manifestações antiausteridade na Europa. O "Sim" dos gregos corresponde a um "Não" a essa conveniente mentira.

A teoria do imperialismo tem mil e uma utilidades. Na África, sob o verniz do panafricanismo, funciona desde as independências como um toque de reunir em torno das elites nativas que controlam o poder estatal. O colonialismo europeu figura como fonte de legitimação de regimes repressivos, excludentes e, em certos casos, cleptocráticos. Na síntese de Mia Couto: "Os únicos culpados de nossos problemas devem ser procurados fora. E nunca dentro. Os poucos de dentro que são maus é porque são agentes dos de fora". O "Sim" grego sugere que não prosperou a lenda, difundida pelo Syriza, segundo a qual os governos europeus tomaram "a decisão política de fechar os bancos da Grécia".

Na América Latina, a teoria do imperialismo cristalizou-se na forma do discurso antiamericano partilhado por caudilhos populistas e por uma esquerda presa à armadilha do nacionalismo. Sob o regime castrista, o artefato serviu para identificar os dissidentes ao "inimigo externo" e qualificar a divergência como traição à pátria. Sob o chavismo, justifica as prateleiras vazias, a inflação selvagem e o derretimento de uma economia petrolífera beneficiada por um longo ciclo de cotações recordistas do barril de petróleo. "Num momento de crise internacional, levantar uma CPI contra a Petrobras é ser pouco patriota", pontificou o então presidente Lula nos idos de 2009. No Brasil, a evocação do imperialismo funciona como linha de defesa da apropriação partidária das estatais. O "Sim" grego é um "Não" a tudo isso.

A imagem icônica de Che Guevara adorna a sede do Syriza, em Atenas. "A Venezuela prova que havia coisas que pareciam impossíveis porque não se tentava. O que acontece aqui é a demonstração de que existe alternativa", exclamou Pablo Iglesias, líder do Podemos, novo partido esquerdista espanhol, numa entrevista concedida em 2013 a uma emissora chavista. Desde a eclosão da crise do euro, articula-se uma esquerda europeia pós-comunista que bebe no chafariz da esquerda autoritária latino-americana. O alvo dessas correntes é a União Europeia, um inimigo que compartilham com a direita nacionalista e xenófoba. O "Sim" grego deve ser traduzido como um "Não" aos discursos escapistas que, nos dois polos do espectro político, ressuscitam antigos fantasmas.

A Grécia não é vítima da Alemanha, mas de si mesma. Para se reerguer, alerta Dominique Strauss-Khan, ela precisa "confrontar a oligarquia, os interesses escusos e o Estado profundo" que solapam o orçamento público. O "Sim" grego é um indício de que, finalmente, essa mensagem civilizatória escapa da garrafa onde a guardaram sucessivos governos --inclusive o do Syriza.

O "Sim" não é um selo de aprovação à austeridade eterna que ameaça o sonho europeu. Mas é um "Não" ao muro mental que sobreviveu à queda do muro real. Amanhã, brindemos ao "Sim".

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