sábado, 11 de julho de 2015

'Cada vez mais perto


Delatores acusam "o homem da presidente Dilma no setor elétrico" de agenciar pagamentos de propina ao PT durante a campanha presidencial de 2014

Daniel Pereira e Robson Bonin – Revista Veja

Quando era presidente, Fernando Henrique Cardoso cultivou a fama de exterminador de crises, que, dizia-se, sempre saíam do Palácio do Planalto menores do que entravam. De Dilma Rousseff, fala-se exatamente o oposto. Centralizadora e avessa a negociações, a presidente semeou um quadro de recessão econômica e de derrotas no Congresso. Rejeitada por nove em cada dez brasileiros, ela também perde apoiadores no grupo de políticos e empresários que ditam o rumo do país. Até o ex-presidente Lula, seu mentor, lhe faz críticas cada vez mais contundentes. Com apenas seis meses de segundo mandato, Dilma está só, não exerce o poder na plenitude nem consegue mobilizar a tropa governista. De quebra, é acossada por investigações que podem destituí-la do cargo — entre elas, a Operação Lava-Jato, que esquadrinha o maior esquema de corrupção da história do país. Diante de uma conjuntura assim, a maioria dos governantes optaria por mais diálogo, sensatez e pés no chão. Dilma não. Ela reage à crise com argumentações destrambelhadas, otimismo exagerado e erros primários de avaliação. Pior: como de costume, alimenta a agenda negativa.

Na semana passada, a presidente, contrariando o mais elementar dos manuais de política, fisgou a isca dos adversários e abordou novamente em público a possibilidade de enfrentar um processo de impeachment. "Eu não vou cair, isso é moleza", desafiou em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, na qual chamou setores da oposição de golpistas. A resposta foi imediata: "Tudo o que contraria o PT é golpe", ironizou o senador Aécio Neves (PSDB). Nos regimes democráticos, a destituição de um mandatário depende de provas, do aval das instituições e do apoio da opinião pública. Em sua defesa, Dilma alega que jamais se locupletou de dinheiro sujo. Falta a essa versão o respaldo inequívoco dos fatos. VEJA teve acesso a mais um testemunho de que propina cobrada em troca de contratos — desta vez, no setor elétrico, a menina dos olhos de Dilma — abasteceu os cofres do PT em pleno ano eleitoral. Os operadores da transação criminosa foram o onipresente João Vaccari Neto, então tesoureiro do partido, e Valter Luiz Cardeal, diretor da Eletrobras, o "homem da Dilma" na estatal e um dos poucos quadros da administração com livre acesso ao gabinete presidencial.

O relato desse novo caso de desvio de verba pública para financiar o projeto de poder petista consta do acordo de delação premiada firmado entre o engenheiro Ricardo Pessoa, dono da construtora UTC, e o Ministério Público Federal. Num de seus depoimentos, Pessoa contou que em setembro do ano passado o consórcio Una 3 — formado por Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa e UTC Engenharia — fechou um contrato para tocar parte das obras da Usina de Angra 3. A assinatura do contrato, estimado em 2,9 bilhões de reais, foi precedida de uma intensa negociação. A Eletrobras pediu um desconto de 10% no valor cobrado pelo consórcio, que aceitou um abatimento de 6%. A diferença não resultou em economia para os cofres públicos. Pelo contrário, aguçou o apetite dos petistas. Tão logo formalizado o desconto de 6%, Cardeal chamou executivos do consórcio Una 3 para uma conversa que fugiu aos esperados padrões técnicos do setor elétrico. Faltava pouco para o primeiro turno da sucessão presidencial. O "homem da Dilma" foi curto e grosso: as empresas deveriam doar ao PT a diferença entre o desconto pedido pela Eletrobras e o desconto aceito por elas. A máquina pública era mais uma vez usada para bancar o partido em mais um engenhoso ardil para esconder a fraude.

A conversa de Cardeal foi com Walmir Pinheiro, diretor financeiro da empresa, escalado para tratar dos detalhes da operação. Depois dela, Vaccari telefonou para o próprio Ricardo Pessoa e cobrou o "pixuleco". "Quando soube que a UTC havia assinado Angra 3, João Vaccari imediatamente procurou para questionar a parte que seria destinada ao PT — o que foi feito pela empresa", relatou o empreiteiro. Aos investigadores, Pessoa fez questão de ressaltar que, segundo seu executivo, foi Cardeal quem alertou Vaccari sobre a diferença de 4 pontos porcentuais entre o desconto pedido pela Eletrobras e o concedido pelas construtoras. Perguntado sobre o que sabia a respeito de Cardeal, Pessoa afirmou: "É pessoa próxima da senhora presidenta da República, Dilma Rousseff". Dilma e Cardeal são amigos há décadas. Nos anos 90, quando ela era secretária de Energia do Rio Grande do Sul, ele trabalhava como diretor da companhia estadual de energia elétrica. Nomeada ministra, Dilma escalou Cardeal para atuar no governo federal. Sob as ordens dela, ele presidiu os conselhos de administração de Furnas e da Eletronorte. Nessa trajetória, chegou a ser denunciado pelo Ministério Público por gestão fraudulenta e desvio de recursos. Nada que lhe abalasse o cargo e o prestígio com a presidente. "Só encontrei com João Vaccari em eventos partidários. Jamais tratei com esse senhor qualquer assunto relacionado ao setor elétrico", disse Cardeal.

Ricardo Pessoa também contou que o contrato de Angra 3 rendeu vantagens financeiras a caciques do PMDB. Os valores foram desembolsados como pagamento à ajuda deles para derrubar "barreiras burocráticas" no setor elétrico, que conta com forte presença do partido. Preço da fatura: 3 milhões de reais, negociados diretamente com os senadores Renan Calheiros (AL), presidente do Congresso, e Romero Jucá (RR). Em sua delação, o ex-presidente da Camargo Corrêa Dalton Avancini também detalhou às autoridades o esquema de corrupção em Angra 3. Avancini afirmou que as empresas do consórcio pagaram propina a políticos do PMDB e a funcionários da Eletronuclear, como o presidente Othon Luiz Pinheiro, também citado por Pessoa. Numa reunião na sede da UTC em agosto de 2014, ficou decidido, segundo Avancini, que a propina equivaleria a 1% do contrato.

Conforme revelado por VEJA, Ricardo Pessoa afirmou aos procuradores que usou recurso desviado da Petrobras para bancar as despesas de dezoito figuras coroadas da República.

Foi com a verba roubada da estatal que a UTC transferiu dinheiro às campanhas de Lula em 2006 e Dilma em 2010. No caso da reeleição da presidente, a doação foi motivada por uma chantagem feita, de "maneira bastante elegante", pelo tesoureiro da campanha presidencial e atual ministro de Comunicação Social, Edinho Silva. "Você tem obra no governo e na Petrobras.

O senhor quer continuar tendo?", disse-lhe Edinho. O achaque deu certo. Documentos entregues por Pessoa ao Ministério Público mostram que a empreiteira doou 7,5 milhões de reais à campanha de Dilma em 2014. Além de municiarem as investigações criminais em curso, os fatos narrados pelo dono da UTC podem ter peso decisivo na Justiça Eleitoral. Pessoa deporá no processo em curso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que analisa denúncia de abuso de poder político e econômico por Dilma na campanha de 2014. Acolhida a representação, a presidente e o vice, Michel Temer (PMDB), terão o mandato cassado e uma nova eleição será convocada.

Antes da revelação do teor da delação do dono da UTC, governistas e oposicionistas faziam a mesma projeção: três dos sete ministros do TSE votariam a favor de Dilma, e dois contrariamente a ela. O desfecho, então, dependeria dos votos de Dias Toffoli e Luiz Fux. Ambos foram nomeados ministros em governos petistas, mas Toffoli se diz escanteado pela presidente, e Fux carrega no currículo votos implacáveis pela condenação da antiga cúpula do PT no processo do mensalão. A previsão é que o TSE decida o caso em setembro. A presidente também é acossada em outra frente de batalha. Em agosto, o Tribunal de Contas da União (TCU) se manifestará sobre a prestação de contas do governo de 2014. A tendência é uma decisão unânime pela rejeição das contas. A sentença será encaminhada ao Congresso, que pode ratificar ou não o entendimento do TCU. Caso o Congresso também as rejeite, estará pavimentado o caminho para a apresentação de um pedido de impeachment de Dilma por crime de responsabilidade. Numa conversa reservada na semana passada, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), reafirmou que rejeitará tal pedido, porque, para ele, Dilma só pode ser cassada por um crime cometido na atual gestão.

Desafeto da petista, Cunha observou, no entanto, que o plenário pode recorrer de sua decisão e determinar a abertura do processo de impeachment. O futuro da presidente passaria, então, a depender da situação da economia, dos humores da base governista e da proporção das manifestações populares marcadas para o dia 16 de agosto. Se houver impeachment, o vice Michel Temer assumirá. Essa solução divide o PSDB. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o senador José Serra veem com bons olhos a possibilidade de Temer se tornar presidente. Serra tem mantido conversas frequentes com o vice. Tucanos dizem que o senador não descarta ser ministro do peemedebista e até cogita lutar para ser o candidato do PMDB ao Planalto em 2018. Com planos de concorrer à Presidência, Alckmin também prefere que, caso Dilma caia, seja pela via do TCU, já que isso afastaria a possibilidade de Aécio, seu principal rival no ninho tucano, sair vitorioso numa eleição de emergência convocada pela Justiça Eleitoral. "Não tenho de ser protagonista de nenhuma ação de impeachment. O processo de abuso do poder econômico na campanha tem de ser julgado pelo tribunal, dentro das regras constitucionais", disse Aécio a VEJA.

Ao contrário do que ocorreu no mensalão, o governo e o PT não contam com um estrategista para organizar a linha de defesa e um plano de superação da crise. A resistência é feita aos trancos e barrancos. Durante meses, Lula pediu a Dilma que se engajasse para deter a Operação Lava-Jato.

Ela, no entanto, manteve o discurso de que nada tinha a ver com o petrolão. Foi acusada pelos companheiros de autismo. Com o agravamento da crise e a possibilidade de ser preso, Lula saiu a campo — não como o líder acostumado a mobilizar exércitos, mas no papel de um político que enfrenta queda de popularidade e está à procura de ajuda. Numa conversa com caciques do PMDB, Lula defendeu a tese de que os presidentes dos três poderes deveriam atuar em conjunto para conter uma campanha de "criminalização político-partidária" que, segundo ele, poderia abrir espaço para um aventureiro conquistar o poder em 2018. O petista citou o caso de Silvio Berlusconi na Itália e, em tom professoral, continuou com uma discurseira institucional até ser interrompido pelo senador José Sarney (PMDB-AP).

Com sessenta anos de vida pública e experiência e lucidez de sobra para traduzir os interlocutores, Sarney disse que o problema verdadeiro era a Lava-Jato, que ameaçava o topo da República, de Lula a Dilma, passando pelos presidentes da Câmara e do Senado. E que só o petista, como o maior líder político do país, poderia deter a enxurrada. Como? Pressionando os ministros dos tribunais superiores a anular a investigação do petrolão com base nas supostas irregularidades e arbitrariedades cometidas pelo juiz Sergio Moro. "O Moro sequestrou a Constituição e o país. O Supremo Tribunal Federal não pode se apequenar", declarou Sarney. Lula concordou com o peemedebista. Era o que ele queria mas não tinha coragem de dizer. O petista já viu os companheiros Delúbio Soares, José Dirceu e Vaccari ser presos. A atuação de seu tesoureiro de campanha à reeleição, José de Filippi, está devidamente relatada na delação de Ricardo Pessoa. Há tanta apreensão no PT que deputados e senadores do partido defendem a ideia de que Lula seja nomeado ministro para ter direito a foro privilegiado e fugir das garras de Moro.

A conversa com os caciques peemedebistas organizou minimamente a tropa petista. Lula ficou de procurar Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), um amigo de longa data que mostrou solidariedade no processo do mensalão e, agora, pode ser decisivo para eventual anulação da Lava-Jato. Na quinta-feira passada, a presidente Dilma recebeu o mesmo Lewandowski para uma conversa em Portugal. Houve uma tentativa de manter o encontro em sigilo. Como ele foi descoberto, restou ao governo alegar que Dilma e Lewandowski trataram do reajuste salarial dos servidores do Judiciário. O PT não respeita a inteligência alheia. Já a presidente, dizem seus próprios aliados, parece viver num universo paralelo. Não sem razão. Na semana passada, Dilma disse que pretende convocar o Conselho da República — formado pela presidente, pelo vice, pelos comandantes da Câmara e do Senado e pelo ministro da Justiça — para defender as instituições brasileiras das ameaças de instabilidade. Só pode ser piada — ou alheamento. Como no caso do mensalão, a investigação do petrolão fortalece as instituições. Riscos a elas, se existem, decorrem dessas tentativas de conchavos nada republicanos.

Com reportagem de Adriano Ceolin e Mariana Barros


Nenhum comentário:

Postar um comentário