domingo, 19 de julho de 2015

José de Souza Martins - O lucro e a fé

- O Estado de S. Paulo / Aliás 

• Não é de hoje que o efeito desagregador do capitalismo bate de frente com a Igreja Católica

Na foto, o sorriso sem graça de Evo Morales é decifrado pela expressão de desapontamento do papa Francisco no ato cerimonial de entrega do presente que o governo boliviano fez ao representante do Estado do Vaticano. É a escultura de um Cristo crucificado sobre a foice e o martelo, símbolo do comunismo. Foi um presente de mau gosto. Outros governos, em diferentes países, têm cometido descuidos parecidos. O Museu da Presidência da República, em Lisboa, expõe presentes dados aos governantes portugueses. Um grotesco e antiecológico casco de tartaruga, sobre a qual um primitivista pintou uma paisagem, foi presente de Juscelino Kubitschek ao presidente Craveiro Lopes de Portugal. Está lá, no meio de objetos de prata e de obras de arte. O regalo se destaca pela impropriedade. É verdade que anos depois o presidente Ernesto Geisel nos redimiu oferecendo a outro presidente português uma bela escultura de Bruno Giorgi.

No caso de um presente a uma pessoa como o papa, é sempre complicado lidar com objetos simbolicamente controvertidos como dádiva a quem é altamente simbólico, pela posição que ocupa e por aquilo que personifica. Francisco ao ver o objeto comentou: “Isso não está certo”.

Trata-se da réplica de uma escultura simples feita pelo jesuíta Luís Espinal, assassinado na Bolívia, em 1980, durante a ditadura militar. O original pertence a outro jesuíta, que estava no mesmo quarto em que o assassinato se deu. Um conjunto de interpretações tentou consertar a antiplomacia do gesto de Evo Morales, ele próprio dizendo ter julgado que o presente agradaria o papa dos pobres, tendo em conta que ele, a caminho de La Paz, parara no local do assassinato para rezar. Mas papa dos pobres não quer dizer papa da foice e do martelo. Não é preciso ser comunista para se interessar pelos pobres, os que Marx definia como lúmpen-proletários, os sem lugar ativo no processo histórico, o oposto do proletariado do apreço marxista.

O incidente aponta para um conjunto de símbolos trocados e de personagens interpretando o objeto e o ato a partir de sistemas simbólicos opostos. Desde os anos 1960, a aproximação entre grupos da Igreja Católica e facções dos partidos comunistas tem sido demarcada pela tentativa de produzir um quadro de referência comum que permita o diálogo e a convivência entre materialistas e crentes, além da ação política conjunta. Tem sido um esforço para superar o veto católico ao comunismo e seus desdobramentos no âmbito da religião e da fé.

Quando da morte de Che Guevara na guerrilha da Bolívia, uma fotografia do cadáver percorreu o mundo como ícone de um Cristo latinoamericano imolado pelo poder do imperialismo explorador, inimigo dos humilhados e ofendidos da terra. Mais adiante, começaram peregrinações de católicos de esquerda ao lugar dessa morte. Mas não se fala que nas anotações do diário do Che, feitas poucas horas antes de sua captura e assassinato, ele se dera conta do equívoco de não ter se aproximado dos camponeses, cuja causa supostamente defendia. Era tarde demais. Che estava só.

Desde então, esforços foram feitos, tanto por setores da Igreja, quanto por diferentes grupos de esquerda para uma aproximação recíproca, o que não suprime equívocos frequentes de ambos os lados. Agora mesmo, na visita do papa a Equador, Bolívia e Paraguai, um militante brasileiro chegou a declarar que “eles” têm Obama e “nós” temos Francisco. O primeiro representando o capitalismo iníquo e opressor e o segundo representando o anticapitalismo libertador.

A crítica católica ao capitalismo vem de longe. João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI a fizeram em nome de uma matriz conservadora, centrada na pessoa contra o mundo que gerou a figura segmentária, alienada e solitária do indivíduo, mais jurídica do que vivencial. Bento XVI, que cita Marx e nem por isso é marxista, retomou, num de seus documentos, o texto de Karl Marx que mais atrai e sensibiliza os cristãos que é o capítulo sobre alienação nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, do mesmo modo que recorreu a Freud para falar sobre a libido no documento sobre o amor. O efeito, socialmente desagregador e desmoralizador, do primado do lucro no mundo contemporâneo não pode deixar de encontrar pela frente a resistência da Igreja Católica. A decomposição da pessoa e das instituições que dela derivam corrói as bases sociais da fé e anula a própria religião, diluída na errância de uma religiosidade de resultados, em que cada um inventa a sua.

Os discursos do papa sobre as iniquidades do mundo subjugado pelo capitalismo não pode ser interpretado como uma adesão ao chamado bolivarianismo, o que quer que isso signifique, e aos socialismos tópicos e superficiais de uma América Latina de incertezas e misérias. Tão escabrosas que nem mesmo os presos de uma prisão boliviana visitados pelo papa, injustiçados pela vida e injustiçados pela Justiça, estão minimamente assistidos pelo mesmo governo do Cristo crucificado na foice e no martelo.

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José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da faculdade de filosofia da USP. Entre outros livros, autor de A política do Brasil lúmpen e místico (Contexto).

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