segunda-feira, 6 de julho de 2015

Marcos Nobre - A ameaça grega

- Valor Econômico

• É a própria Europa que se encontra à beira do precipício

A crise grega não se enquadra na categoria "risco sistêmico". Não ameaça o sistema bancário internacional, muito menos a moeda única europeia - não diretamente, pelo menos. O que assusta é justamente isso: não sendo antessala de nenhuma crise global, a Grécia representa uma ameaça ainda mais grave. Representa o mais claro sintoma de que o arranjo político internacional que se instalou depois de 1989 está caduco. A crise econômica mundial iniciada em 2007 foi o primeiro sério abalo desse arranjo. As revoltas democráticas iniciadas em 2011 mundo afora mostraram que ele é insustentável.

Com o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, estabeleceu-se um sistema de coordenação que combinava relativa margem de autonomia para políticas nacionais de desenvolvimento e de proteção social com submissão forçada à lógica da Guerra Fria. A margem de autonomia de cada país era diretamente proporcional ao seu grau de desenvolvimento e inversamente proporcional à posição estratégica que ocupava na disputa entre as chamadas superpotências, EUA e União Soviética. Basta lembrar as ditaduras em países como Portugal, Espanha, Grécia, ou na América Latina para ter claro o alcance dessa limitação.

Dentro desses limites, alguns poucos países europeus conseguiram produzir um sistema político democrático polarizado entre direita e esquerda. A base comum sobre a qual se dava essa polarização política foi um modelo de sociedade que ficou conhecido como Estado de Bem-Estar Social e que parece hoje uma espécie de oásis de justiça social diante das misérias que se seguiram. Porque o acordo de barganhar algum grau de autodeterminação nacional por alinhamento estrito à estratégia geopolítica dos EUA se encerrou definitivamente com o colapso do bloco liderado pela União Soviética, em 1991.

Com estados nacionais endividados e mercados em rápido processo de liberalização, a camisa de força não era mais a da Guerra Fria, mas a do crédito e do investimento. Para conseguir fechar as contas e manter o crescimento econômico, países tinham de se submeter a uma dieta rigorosa de política econômica e de desenho institucional. Tempo de globalização, governança, de protagonismo das agências de risco. A metáfora predileta é simples, direta e regressiva: quem quer crédito e investimento tem de "fazer o dever de casa".

O preço cobrado por esse novo consenso forçado foi a canibalização dos sistemas partidários erguidos no pós-1945, refuncionalizados para servir a novos fins. Os partidos líderes do sistema passaram a se espremer no exíguo espaço de um novo centro político. Daí nasceu, por exemplo, o "Novo Centro", slogan do governo do Partido Social-Democrata alemão liderado por Gerhard Schröder de 1998 a 2005. Mas a versão mais famosa dessa reconfiguração foi a "Terceira Via", representada exemplarmente pelo governo de Tony Blair na Inglaterra, entre 1997 e 2007. Foi uma aceitação do novo consenso com dez porcento de desconto social - às vezes, nem mesmo isso.

Todo esse arranjo foi minado em sua base pela crise econômica mundial. A miopia ideológica que deixou quebrar o banco Lehman Brothers em 2008 está agora amplificada no caso da quebra da Grécia. A questão de fundo colocada pela crise grega não é apenas a do colapso de um país inteiro. O que está em causa é saber se o declínio do arranjo que vigorou nos últimos 25 anos não irá arrastar com o tempo o próprio projeto do euro. Não por causa da Grécia, não por causa de um "erro técnico" qualquer na construção da moeda única.

Não faltam avisos de que o arranjo que surgiu da globalização dos anos 1990 não tem mais como se sustentar. O sinal mais evidente são as revoltas democráticas que sacudiram o mundo a partir de 2011. Ainda que muito diferentes entre si, movimentos como o 15-M na Espanha, o Occupy Wall Street, a Primavera Árabe, o Junho brasileiro apontam para o esgotamento de uma forma de entender e de fazer política que pertence ao século 20. Também indicam que os discursos do dever de casa e da austeridade perderam capacidade de se impor.

O mais dramático da situação está em que o carcomido sistema político europeu vê as novas formas de organização política que surgiram dos protestos como competidores a serem abatidos e não como o prenúncio de uma reorganização necessária. Sua tática de sobrevivência é tentar reduzir a alternativa a uma escolha entre o establishment e o risco real da volta do fascismo e do nazismo. Consegue, com isso, barrar o aprofundamento da democracia que, só ele, pode efetivamente bloquear a ascensão da extrema direita no continente.

A democracia de massas europeia da segunda metade do século 20 foi animada pela ideia de que partidos deveriam ser braços da sociedade dentro do Estado. Hoje, partidos se tornaram entidades paraestatais, braços do Estado para controlar a sociedade. Não se trata de edulcorar as novas formas de organização política surgidas nos últimos anos, como o Syriza, na Grécia, ou o Podemos, na Espanha. Trata-se apenas de reconhecer que são animadas pelo impulso original que a forma partido um dia pretendeu ter.

Dentro do velho sistema europeu em vigor, não há quem não saiba que a dívida grega é impagável. Não há quem não saiba que a tolerância social para políticas recessivas e de cortes de direitos chegou ao seu limite. Não há quem não saiba que a Grécia foi parar na beira do precipício porque seu atual governo estava, desde o início, com um problema insolúvel nas mãos.

A atitude do sistema europeu em relação à Grécia é tentativa desesperada de colocar a nova energia social de volta dentro da garrafa, dentro dos estreitos limites do arranjo forçado herdado da globalização. Trata-se de tentar eliminar alternativas ao establishment, aos velhos partidos e às velhas práticas. Nessa lógica, "fazer o dever de casa" não é suficiente; é preciso fazê-lo nas dependências da velha escola europeia. Uma escola que ainda usa a palmatória, que está com seus dias contados. Na Grécia, é a Europa que se encontra à beira do precipício.

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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap

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