domingo, 12 de julho de 2015

Pedro S. Malan - Narrativas - modos de usar

- O Estado de S. Paulo

“Há situações verossímeis que não são verdadeiras. E vice-versa. O êxito da atividade jornalística está em mostrar a diferença”, escreveu Alberto Dines tempos atrás. O italiano Umberto Eco, cujo último romance acaba de ser lançado no Brasil e tem o jornalismo como tema, parece concordar com Dines: “É preciso filtrar, distinguir – aprofundar a informação através de análises e comentários”. Nisso estamos no Brasil de hoje. E até que indo bem.

A mídia brasileira, a meu ver (sei que outros discordam), no geral tem feito muito bom trabalho no sentido de atender aos apelos de Dines e Eco. Como notou o editorial da revista Época do fim de semana passada, “é pelos jornais, sejam eles impressos ou digitais, que se sente o pulso e se desvenda a alma de um país”.

Esse sentir e esse desvendar podem, com a passagem do tempo, assumir a forma de narrativas que procuram conferir algum sentido interpretativo mais geral ao fluxo de informações, argumentos – e posições que vão se formando. Essas narrativas estão em constante competição entre si por mentes e corações dos membros de uma sociedade. É verdade que umas podem ser mais resistentes que outras à passagem do tempo e aos ventos do mundo. Mas o poder das narrativas não deve ser subestimado.

Toda sociedade organizada precisa ter alguma consciência social de seu passado, base para entender o presente, e saber que as opções futuras – que sempre existem – não são atos de voluntarismo explícito: afinal, os homens não fazem história “como bem a entendem” e as escolhas de hoje são, em boa medida, afetadas pelas consequências de escolhas feitas no passado. Essa é a função social de narrativas. Porque é difícil que alguém saiba dizer para onde está indo, ou poderia ir, se não sabe explicar de onde veio e onde acha que se encontra agora – sem negação de problemas e excessivas ilusões.

Todo debate político, econômico ou social tem por trás, de uma forma ou outra, uma narrativa ou esboço de narrativa por meio dos quais se procura exercer a arte da persuasão: convencer “o outro” de seu argumento; mostrar que aquela narrativa lhe diz respeito, pode ser-lhe útil, ajuda-o a entender melhor o que está acontecendo à sua volta e lhe permite melhores escolhas, para si e para o País. Nisso estamos. Aprendendo.

Os brasileiros, hoje, querem entender o que está acontecendo, ou melhor, o que lhes está acontecendo. E, principalmente, o que o governo atual tem a dizer sobre o presente – e sobre os próximos três anos. Creio que os brasileiros, hoje, em sua grande maioria, não estão mais interessados – se é que estiveram um dia – no discurso (na narrativa) do “nunca antes na História”, nas comparações com um governo iniciado 20 anos atrás, nas eternas bravatas de campanha e no discurso do “nós” contra “eles” (quaisquer oposições). Afinal, o lulopetismo está no poder há 12 anos, 6 meses e 10 dias.

E o que tem a dizer aos brasileiros nestes difíceis meados de 2015? Que foi um contexto internacional adverso? Que foi a falta de chuva? Que pretende, apesar de tudo, seguir sempre adiante com o que chama “seu projeto” – que é o de continuar no poder no pós-Dilma 2? A narrativa lulopetista, que nunca foi considerada verdadeira por parte expressiva da população brasileira, deixou de ser verossímil para a grande maioria. Há que mudar seu discurso e sua prática. E nisso está o governo, paradoxalmente desde fins de outubro de 2014, quando a narrativa era outra, agora em tortuoso processo de revisão.

Assim como estão aprendendo gregos e não gregos europeus, cada qual com sua narrativa sobre o processo pelo qual chegaram à situação atual, e sobre como lidar com ela – olhando à frente. Este artigo foi escrito antes de se tornar público o resultado das intensas negociações deste fim de semana entre o governo grego e os demais governos europeus para evitar uma saída desordenada da Grécia da zona do euro. Os governos europeus são hoje, por larga margem, os principais credores da Grécia, detendo, direta ou indiretamente, mais de US$ 400 bilhões. Não é fácil.

De fato, os gregos estão lidando com governos tão legítima e democraticamente eleitos quanto o deles. E se este tem de levar em conta a opinião pública grega (cuja maioria, diga-se de passagem, é contra a saída do euro), os demais também são obrigados a fazê-lo. E muitos sabem qual seria o resultado de um plebiscito sobre ajuda adicional à Grécia (sem condições) em seus respectivos territórios.

O plebiscito grego de domingo passado não foi o primeiro e não deverá ser o último na Europa. Desde 1992, que me lembre, houve plebiscitos na Dinamarca, na França, na Irlanda (dois em cada) e na Holanda. Após alguns deles, escrevi neste espaço, anos atrás: “Na Europa, em particular, é forte a reação daqueles com receio do desemprego, da reforma trabalhista, da globalização, de privatização, e de mudanças no welfare state europeu. Este tipo de insatisfação é o principal problema político para os governos europeus hoje, porque, paradoxalmente, é uma insatisfação voltada tanto contra o precário desempenho econômico dos últimos anos quanto contra as reformas que poderiam melhorá-lo”. Qualquer semelhança com um país que conhecemos um pouco melhor não é mera coincidência.

Já que induzi o eventual leitor a pensar no Brasil, eu não poderia concluir este artigo, em julho de 2015, sem relembrar que poucos dias atrás o real completou 21 anos, tornando-se mais longevo que a duração do ciclo de governos militares (1964-1985). Que o real tenha vindo para ficar como a definitiva moeda brasileira, símbolo de um avanço institucional memorável após décadas de inflação crônica, alta e crescente. Que o ciclo militar tenha ficado definitivamente para trás e o Estado Democrático de Direito – e republicano – ora em construção entre nós esteja, como o real, para sempre em nosso futuro.

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* Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC.

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