segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Desafios da modernidade

Willi Bolle – Folha de S. Paulo / Ilustríssima

• A Paris do século 19 em dois lançamentos

Resumo Dois lançamentos abordam o tema da modernidade tendo como objeto a Paris do século 19. O livro de David Harvey trata do processo de modernização urbana parisiense e suas implicações na divisão social. Já "Baudelaire e a Modernidade" republica textos de Walter Benjamin, referência nos estudos sobre o assunto.
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Como a sociedade moderna organiza seu espaço? Eis a questão-guia do geógrafo e antropólogo David Harvey em seu livro "Paris: Capital da Modernidade" [trad. Magda Lopes, Boitempo, 326 págs., R$ 69].

O leitor é introduzido à cidade por meio dos romances de Balzac, observações de Marx e mais de cem ilustrações, entre elas fotografias de Marville e caricaturas de Daumier. São focalizadas as radicais reformas urbanas feitas durante o Segundo Império (1852-70) pelo prefeito Haussmann.

As melhorias da circulação e do transporte coletivo pela abertura de bulevares e a criação de ampla rede ferroviária de Paris para o país todo são bem avaliadas.

Mas Haussmann é criticado por ter privilegiado as construções de alto custo. Retomando o lema "Enriqueçam-se!", proposto pela Monarquia de Julho (1830-48), ele favoreceu especulações financeiras cada vez maiores e a corrupção –o que faz lembrar "a nossa própria recente enxurrada de escândalos financeiros", comenta Harvey.

O resultado foi um aumento das desigualdades sociais e uma crescente segregação espacial entre burgueses e trabalhadores. Com as demolições ao mesmo tempo saneadoras e especulativas no centro da cidade e o forte aumento dos aluguéis, a população pobre foi empurrada para a periferia.

Houve também sérias negligências do governo na área social: alimentação, moradia, saúde e educação das classes populares.

Com espetáculos de diversão das massas –inaugurações de bulevares, paradas militares e exposições universais– os donos do poder procuravam maquiar as deficiências. Ora, as classes abandonadas acabaram se tornando "classes perigosas". Trabalhadores e burgueses culpavam-se mutuamente: uns denunciando a anarquia do livre mercado, que gerou desemprego; e os outros, temendo a desordem dos "subversivos", mobilizavam o aparato da vigilância e repressão policial.

Tudo isso levou ao confronto entre duas cidades, Paris Oeste e Paris Leste, cuja linha divisória acabaram sendo as barricadas da insurreição da Comuna em 1871, espalhadas por vários pontos.

Fazendo um balanço dessa época da modernidade –caracterizada ao mesmo tempo pelos movimentos sociais militantes de 1830, 1848 e 1871 e pela sua repressão–Harvey procura avaliar o legado do pensamento deixado por utopistas e revolucionários.

Entre eles, Charles Fourier, que buscava uma transição do "caos social para a harmonia universal", propondo a criação de "falanstérios", que seriam edifícios de produção, consumo, habitação e satisfação dos desejos, inclusive sexuais. Saint-Simon, mais pragmático, apostava no produtivismo, considerando como industriais todos aqueles que estivessem engajados em atividade produtiva útil: trabalhadores e camponeses, empresários, banqueiros e comerciantes, cientistas, pensadores e educadores. Auguste Blanqui, ao contrário, propagou a ditadura do proletariado, mas depois do fracasso da Comuna, caiu numa profunda resignação.

"Temos muito a aprender com o estudo dessas lutas", é a conclusão de Harvey; "nelas há muito para admirar e em que se inspirar". Com efeito, a principal conquista daquelas lutas foi o estabelecimento da República, em 1871, e, com isso, de uma das mais sólidas democracias –diferentemente do que aconteceu entre 1871 e os anos 1930 no país vizinho, a Alemanha.

O título do livro de Harvey faz eco ao texto "Paris, Capital do Século 19", de Walter Benjamin, cujos livros "Passagens Parisienses" e "Charles Baudelaire, um Poeta Lírico no Auge do Capitalismo" são comentados. Sobre esse conjunto temático, Benjamin produziu um labirinto de textos, na maioria inacabados, de modo que o leitor necessita de uma orientação. A mais atualizada é fornecida pelo livro "Baudelaire", organizado por Giorgio Agamben, Barbara Chitussi e Clemens-Carl Härle, lançado na França em fins de 2013 pelas Éditions La Fabrique.

Apoiando-me nessa publicação, farei um mapeamento dos textos mais significativos de Benjamin sobre Paris. Veremos que não apenas os seus conteúdos mas também suas formas de composição nos levam para dentro das contradições da modernidade.

O projeto de Benjamin era escrever uma história social da cidade de Paris no século 19. A base foi uma ampla coleta de materiais na Biblioteca Nacional da França, especialmente a partir de 1934, quando ele já se encontrava no exílio. Esse arquivo, organizado em 36 cadernos temáticos, com mais de 4.000 fragmentos em quase 1.000 páginas, constitui essencialmente a edição das "Passagens" (inédito até 1982, saiu no Brasil em 2006).

Como bolsista do Instituto de Pesquisa Social, que se transferiu para Nova York, Benjamin enviou em 1935 para o diretor Max Horkheimer um esboço do seu projeto: "Paris, Capital do Século 19".

É uma constelação de temas do arquivo: ícones urbanos –passagens, panoramas, exposições universais, moradia burguesa, ruas de Paris e barricadas– conectados a personagens da época: o "rei burguês" Luís Filipe, o prefeito Haussmann, o utopista Fourier e os artistas inventores Daguerre, Grandville e Baudelaire.

Acompanhando a perspectiva do poeta exemplar da modernidade, Benjamin resolveu em 1937 escrever "um modelo das Passagens" na forma do livro "Baudelaire, um Poeta no Auge do Capitalismo", que ficou inacabado.

Uma reunião dos trechos redigidos –que havia sido editada em 1969 e 1974 (as traduções brasileiras são de 1985 e 1989)– foi republicada em *"Baudelaire e a Modernidade" [trad. João Barrento, Autêntica, 352 págs., R$ 43]*, título que Benjamin nunca usou.

Livro-modelo Uma detalhada ideia do que ele efetivamente planejou está contida na planta de construção (mais de 500 páginas) do livro-modelo, descoberta por Agamben na Biblioteca Nacional Francesa em 1981 e publicada por ele agora. Dos 4.234 fragmentos do Grande Arquivo, Benjamin selecionou 1.745, resumindo cada um deles em uma linha e agrupando-os em 30 categorias construtivas.

A parte 1 do livro seria intitulada "Baudelaire como Poeta Alegórico". Benjamin, que concebeu a alegoria como um procedimento de desmontagem, destruição e fragmentação, mostra como Baudelaire substitui as visões harmoniosas de Paris por imagens de sua caducidade. A parte 3 do livro seria chamada "A Mercadoria como Objeto Poético". A partir desse fetiche do capitalismo –"Exposições universais são os locais de peregrinação ao fetiche da mercadoria"– é desenvolvida uma reflexão crítica sobre a modernidade, na qual todos nós nos tornamos mercadoria.

Dessas partes inicial e final do livro existe apenas um conjunto de 45 fragmentos de redação, com o título "Parque Central" (1974, edição brasileira de 1985), uma alusão a Nova York, para onde o autor tinha a intenção de emigrar.

Benjamin decidiu começar a escrita do livro-modelo pela parte 2, intitulada "A Paris do Segundo Império em Baudelaire". A protagonista passou a ser a metrópole, com os textos do poeta como "medium" para registrar as sensações que ela provocava nos habitantes. Essa parte central do livro, que ficou pronta em setembro de 1938, é subdividida em três capítulos:

O capítulo inicial, "A Bohème", focaliza a sociedade parisiense a partir do ambiente político e do mercado literário, com destaque para a importância crescente dos meios de comunicação de massas.

No capítulo do meio, "O Flâneur", Benjamin acompanha essa figura emblemática, precursora do escritor-jornalista moderno, que observa a multidão nas ruas e nas galerias de compras ou passagens.

Ao retratar a sociedade do Segundo Império, procura entender em que medida um certo tipo de mentalidade ressurgiu na República de Weimar (1919-33), quando a pequena burguesia e as massas se tornaram clientes oportunistas da demagogia "nacional socialista", no processo político que levou à ditadura do Terceiro Reich.

O capítulo final, "A Modernidade", procura sintetizar as experiências da política burguesa autoritária na França durante as décadas de 1830 a 1870: "O século 19 não soube corresponder às novas possibilidades tecnológicas com uma nova ordem social. Assim se impuseram as mediações falaciosas entre o velho e o novo. O mundo dominado por essas fantasmagorias é a modernidade".

Adorno criticou nesses três capítulos "a falta de mediação teórica" e as "montagens em forma de choque". Por exemplo, o modo de Benjamin confrontar os reclames do conforto do apartamento burguês com a situação dos moradores de rua. Com isso, "A Paris do Segundo Império..." foi recusado para publicação na revista do Instituto de Pesquisa Social.

Benjamin reescreveu o texto, concentrando-se no capítulo "O Flâneur", do qual resultou o artigo "Sobre Alguns Temas em Baudelaire" –título que tem uma conotação de dissolução.

Terminado em agosto de 1939, esse acabou sendo o único texto das "Passagens" que ele viu publicado em vida. Logo depois irrompeu a Segunda Guerra Mundial e, em junho de 1940, a França foi invadida pelas tropas alemãs. A tentativa de fuga de Benjamin terminou, como se sabe, em setembro do mesmo ano com o seu suicídio. Em sua memória, o Instituto publicou em 1942 as chamadas "Teses sobre o Conceito de História", redigidas no início de 1940.

Assim, o grande projeto das "Passagens", do qual fazem parte os escritos e esboços sobre Baudelaire, ficou inacabado, e os estudiosos ainda aguardam uma edição que reproduza fielmente todos os seus elementos constitutivos.

Como Benjamin propôs nas teses, trata-se de organizar a história a partir dos momentos de perigo.

Foi o que ele fez com a sua própria obra em termos de estratégia de escrita. Devido às referidas vicissitudes, ele não pôde concluí-la. Mas ele respondeu a essa fragmentação contingente com uma fragmentação construtiva.

Diante dessa obra toda estilhaçada, o leitor é incentivado a tornar-se um colaborador ativo. A partir da "desordem produtiva" deixada por Benjamin nós mesmos devemos montar o retrato da modernidade: a de Paris no século 19 e a do nosso aqui e agora.

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