sábado, 29 de agosto de 2015

Memória do espanto

• Completando 85 anos, Ferreira Gullar recorda as origens de suas principais obras no livro ‘Autobiografia poética’

Outros começos

• Sem escrever poemas desde o livro ‘Em alguma parte alguma’, de 2010, Ferreira Gullar relembra momentos de superação de impasses criativos ao longo de mais de seis décadas de carreira

Guilherme Freitas - O Globo / Prosa

"Não acho que escrever seja sofrimento. A origem do poema pode até ser trágica, mas o poema quer ser belo, quer dar a alegria da leitura". Ferreira Gullar  Poeta

Numa entrevista de 1965 para a “Revista Civilização Brasileira”, Ferreira Gullar diz que, em vez de “inspiração”, prefere o termo “espanto”, que descreve como uma forma de “ruptura do mundo”. No novo ensaio “Autobiografia poética”, ele diz que só escreve “movido pelo que chamo de espanto” e o define dessa vez como “a súbita constatação de que o mundo não está explicado e, por isso, a cada momento, nos põe diante de seu invencível mistério”.

Separadas por 50 anos, as duas definições de “espanto” aparecem em “Autobiografia poética e outros textos”, que Gullar lança na quarta-feira, dia 2, às 19h, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, em bate-papo com o jornalista Geneton Moraes Neto. O livro, que reúne um ensaio inédito, entrevistas e artigos sobre poesia, é seu primeiro pela editora Autêntica, que lança ainda este ano uma nova edição de “O formigueiro” (1955), em parceria com a Academia Brasileira de Letras (ABL), e prepara para 2016 uma coletânea de textos do poeta sobre artes plásticas. Gullar também é uma das principais atrações da 17ª Bienal do Livro do Rio, que começa quinta-feira no Riocentro. Participa do Café Literário dia 13, às 15h, quando lançará também uma versão revista e ampliada de “Toda poesia” (José Olympio).

Prestes a completar 85 anos, dia 10, Gullar revisita em “Autobiografia poética” os momentos de “espanto” que deram origem a suas obras mais conhecidas, como “A luta corporal” (1954) e “Poema sujo” (1976). Reconta ainda sua versão sobre momentos centrais das artes brasileiras no século XX, como o concretismo, o neoconcretismo e o engajamento de artistas e intelectuais durante a ditadura. O ensaio cobre desde a juventude do autor maranhense, quando descobriu a poesia em São Luís, até seus versos mais recentes, de “Em alguma parte alguma” (2010), depois do qual ainda não escreveu novos poemas.

Em seu apartamento em Copacabana, Gullar diz que tem sentido mais “espanto” fazendo as colagens e móbiles que se espalham pelas paredes e pelo teto da sala. Mostra com orgulho as obras feitas em papel e metal, muitas delas datadas de 2015. Mas deixa claro que não desistiu da poesia.

— Quando terminei “Em alguma parte alguma”, senti que algo tinha mudado. Algo indefinido. Mas não digo que não vou mais escrever poemas. A melhor experiência literária que tenho é a poesia. Não acho que escrever seja sofrimento. A origem do poema pode até ser trágica, mas o poema quer ser belo, quer dar a alegria da leitura.

De São Luís para o Rio de Janeiro
Gullar teve essas primeiras alegrias na capital maranhense, onde nasceu, em 1930. Nos anos 1940, ele era um dos jovens artistas buscando espaço numa cidade com poucas revistas literárias e nenhuma galeria, onde exposições eram improvisadas em lojas de roupas ou farmácias. Quando contou ao irmão mais velho que queria ser poeta, ouviu um alerta sobre o risco de enlouquecer, como um vizinho que costumava correr pelo quarteirão gritando “coisas incompreensíveis que dizia serem poemas”.

Criado numa casa com poucos livros, onde as leituras mais comuns eram histórias policiais e quadrinhos de Batman e Super-Homem, Gullar começou a ler poesia com românticos, como Gonçalves Dias, e parnasianos, como Olavo Bilac e Raimundo Correia. Ele não se lembra do primeiro poema que escreveu, mas sim do espanto que teve ao conhecer um poeta pela primeira vez, Manuel Sobrinho, integrante da Academia Maranhense que se interessou pelo trabalho do iniciante.

— Eu achava que todos os poetas estavam mortos, mas descobri que São Luís estava cheia deles — brinca Gullar, que no livro relembra o trabalho com artistas da cidade e a descoberta da nova literatura brasileira. — O modernismo de 1922 só chegou ao Maranhão no fim dos anos 1940. Quando comecei a ler os modernos, minha visão da poesia mudou completamente e senti que não podia mais ficar em São Luís.

Depois de publicar o primeiro livro, “Um pouco acima do chão” (1949), influenciado pelos parnasianos, Gullar se mudou para o Rio, onde conheceu o crítico de arte Mário Pedrosa e buscou aplicar em sua poesia as novas leituras, como Bandeira, Drummond, Murilo Mendes, Rilke e Breton.

“Autobiografia poética” registra seu dilema no início dos anos 1950: “a experiência que me conduzia a escrever o poema era algo novo, enquanto a linguagem em que a expressava era velha”. Gullar reconta a procura por uma “linguagem nova”, como numa caminhada do Centro a Laranjeiras, na Sexta-Feira Santa de 1953, quando, numa espécie de transe, foi anotando em recibos, notas e papéis que levava nos bolsos os versos daquele que se tornaria um dos poemas mais radicais de “A luta corporal”, “Roçzeiral”: “Au sôflu i luz ta pompa/ inova’/ orbita/ FUROR/ tô bicho/ 'scuro fogo/ Rra”.

— Fui desintegrando a linguagem. Senti que tinha ultrapassado o limite e achei que não ia conseguir escrever mais. Ainda assim, decidi publicar o livro, como os restos de um incêndio.

Nos anos seguintes, Gullar participou de momentos-chave das vanguardas artísticas no país. Em “Autobiografia poética”, ele reafirma seu ponto de vista sobre o concretismo ea I Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada em 1956 em São Paulo e no ano seguinte no Rio. Um dos seis poetas presentes, ao lado dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, de Décio Pignatari, Ronaldo Azeredo e Wlademir Dias-Pino, ele expôs páginas de “O formigueiro”, que ganha nova edição este ano.

No ensaio, Gullar volta a defender argumentos que já causaram controvérsia, como o de que foi ele quem incentivou os concretistas a valorizarem a obra de Oswald de Andrade, num almoço com Augusto de Campos no Rio, em 1955. Quando Gullar expôs essa tese em sua coluna na “Folha de S. Paulo”, em 2011, Campos publicou réplica afirmando que o almoço jamais ocorreu, relembrando seus encontros com Oswald, a partir de 1949, e citando um texto assinado pelo grupo paulista em 1950 em homenagem ao autor do “Manifesto antropófago”, entre outros trabalhos relacionados a ele.

Gullar narra a ruptura com o grupo paulista, em 1957, atribuindo-a ao que considerava uma “exacerbação racionalista” da poesia concreta. E descreve o desenvolvimento nos anos seguintes do neoconcretismo, com artistas como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Amilcar de Castro, Franz Weissmann e Lygia Pape. Mas diz que o neoconcretismo “não nasceu por causa de uma briga”.

— O que a Lygia Clark fazia como pintora, ou o Amílcar como escultor, já era diferente do que os concretistas faziam. O Manifesto Neoconcreto não anunciava nada para o futuro, falava do já feito, para mostrar que era algo novo.

‘Quando o inesperado se revela’
Outro momento de impasse recordado por Gullar em “Autobiografia poética” é sua mudança para Brasília, em 1961, convidado pelo presidente João Goulart para dirigir a Fundação Cultural. O contato com a nova capital foi decisivo para uma guinada política em sua poesia. Nos anos seguintes, aderiu ao Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE e publicou poemas e cordéis sobre temas como a reforma agrária.

— Brasília misturava o que havia de mais moderno no país, a arquitetura de Niemeyer, com o mais arcaico, o trabalho braçal dos peões que estavam construindo a cidade. Esses dois Brasis começaram a fermentar na minha cabeça, e isso me levou à poesia política— lembra Gullar.

Nos anos 1970, durante a ditadura, exilou-se na União Soviética e depois no Chile, no Peru e na Argentina, onde escreveu o texto em que superou as limitações que já via na linguagem da poesia engajada. Sem poder sair de Buenos Aires, com o passaporte vencido, vendo ditaduras em todo o Cone Sul, decidiu escrever “tudo que me faltava escrever”, incorporando memória, estética, política. Surgia “Poema sujo” (1976):

— Escrevi “Poema sujo” como se fosse a última coisa da minha vida.

“Autobiografia poética” percorre os vários livros publicados depois de “Poema sujo”, até “Em alguma parte alguma”. Gullar diz que cinco anos é o maior período que já passou sem escrever poemas, mas talvez esteja diante de um novo impasse, como os descritos no ensaio. Um dos temas do livro é a dificuldade do autor em começar um poema, mas também sua capacidade de superá-la quando surge, “nas situações mais comuns, que é quando o inesperado se revela”, o espanto diante do “invencível mistério” do mundo. “Tentar expressá-lo é a pretensão do poeta”, escreve.

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