quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Os fatos se impõem – Editorial / O Estado de S. Paulo

Em sua coluna de ontem no Estado Dora Kramer colocou o dedo na chaga: "Vamos ao ponto: José Dirceu só fez o que os investigadores da Operação Lava Jato dizem que ele fez na Petrobrás e cercanias da máquina pública porque a instância superior a ele deixou que fizesse". De fato, o conjunto de evidências e provas fartamente apresentadas pelo juiz Sergio Moro na decretação da prisão preventiva do ex-ministro e ex-presidente do PT estimula a suspeita – que perdura há 10 anos, desde o estouro do escândalo do mensalão – de que José Dirceu não agiu por conta própria ao arquitetar e executar a trama criminosa pela qual foi condenado. Com a cautela que se exige de um profissional de imprensa responsável, Kramer observa: "Resta saber – e comprovar – se a instância superior a José Dirceu, a Presidência da República, à época ocupada por Luiz Inácio da Silva, detinha o domínio daqueles fatos".

Domínio do fato – este é o ponto crucial da questão. Essa teoria, que embasou várias decisões no julgamento do mensalão, consagra, simplificadamente, o princípio de que, em determinadas circunstâncias, quando existe uma relação hierárquica, mesmo que não seja o mandante, é impossível que o hierarca superior ignore o delito praticado por seu subordinado, o que o torna corresponsável pela infração.

Até cair nas malhas da Justiça José Dirceu era o segundo no comando do governo e do PT. Foi ele, com a ousadia e o destemor que sempre marcaram sua atuação política, o articulador da estratégia de alianças que quebraram as resistências da ortodoxia petista e abriram caminho para a vitória nas urnas em 2002. Chegou ao governo com uma autoridade incontrastável que desde logo o guindou à condição de herdeiro presuntivo da coroa. Razão mais do que suficiente para que o rei do pedaço se mantivesse sempre muito atento a seus passos, até porque o elevara à condição de primeiro-ministro de fato.

Cabe, então, a pergunta: é plausível a hipótese de que Lula – que, definitivamente, de tolo não tem nada – não se tenha dado conta de que José Dirceu tramava sob seu nariz aquela que se revelou ser apenas a primeira fase de um processo de corrupção que evoluiu para o petrolão e ainda não se sabe onde vai chegar? Tratava-se, afinal, de uma conspiração para dar respaldo financeiro ao ambicioso projeto político do PT e, já que o dinheiro estava à mão, engordar a poupança de políticos, empresários e agentes inescrupulosos.

O retrospecto do episódio do mensalão demonstra que era de natureza essencialmente política o principal motivo pelo qual as investigações de então passaram ao largo da Presidência da República. A chefia do governo era exercida por um líder popular de origem humilde, com prestígio em ascensão dentro e fora do País, envolto pela aura de construtor de uma nova era de justiça social e de prosperidade. Até por conta de seu carisma, qualquer ameaça ao poder de Lula poderia ser interpretada pela maior parte dos brasileiros como golpismo da "elite" e pôr em risco o equilíbrio das instituições. A oposição partidária se deu conta desse risco e aliviou a pressão sobre o Planalto. Lula saiu ileso e fortalecido, mas hoje não é mais o mesmo.

Como comprovam as investigações da Lava Jato, o esquema criminoso ensaiado no mensalão ampliou-se em proporções gigantescas com o propinoduto da Petrobrás e, ao que tudo indica, espalhou-se pelo setor público numa extensão ainda desconhecida. De quebra, José Dirceu, o herói popular "injustiçado" pelo STF, surge desse enredo como um tipo muito diligente também quando se trata de encher o próprio bolso.

Reagindo à nova prisão do desmoralizado "guerreiro do povo brasileiro", intelectuais "de esquerda", alheios aos fatos, recorrem a qualquer argumento na tentativa de desmoralizar as investigações do Ministério Público e da Polícia Federal, bem como a integridade do juiz Sergio Moro. Um deles "denunciou" que a intenção dissimulada da "direita" é atingir Lula. É difícil de saber se a "direita" terá esse poder. Mas hoje a Justiça certamente o tem, se houver provas que o incriminem. E não há nada de sub-reptício nisso.

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