sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Rogério Furquim Werneck - Culpa da democracia?

- O Globo

• Palocci propôs, em 2005, ajuste de longo prazo para impedir que gasto público continuasse a crescer mais rapidamente que o PIB

É difícil que o país consiga sair do atoleiro fiscal em que foi metido sem entender com clareza como foi mesmo que acabou nessa situação. Parece inacreditável que, a esta altura dos acontecimentos, ainda haja quem queira reescrever a história e relevar o papel central que teve a presidente Dilma na condução da economia a tal desastre.

Há mais de duas décadas, o dispêndio primário do governo vem crescendo muito mais rapidamente que o PIB. E exigindo elevação persistente da carga tributária. Esse descontrole estrutural do gasto público tem sido associado às dificuldades de conter as pressões políticas que ganharam força a partir da redemocratização.

É com base nisso que agora ganharam destaque na mídia narrativas sobre o atual quadro de devastação fiscal em que se alega que, para azar de Dilma, o desequilíbrio fiscal estrutural acabou explodindo no seu colo. E que não se pode culpar a presidente pelo descontrole do gasto público. Porque a verdadeira culpada seria — pasmem — a democracia brasileira.

Pressões por expansão de gasto público são intrínsecas a qualquer democracia. Não se trata de peculiaridade brasileira. Cabe ao governo acomodar essas pressões sem deixar que redundem em descontrole fiscal. Basta olhar em volta para perceber que outras democracias vêm administrando tais pressões com muito mais sucesso que o Brasil.

Que a expansão de gasto público era insustentável já estava claro há dez anos. E, na época, a democracia brasileira, revigorada pela alternância de poder, parecia pronta a equacionar o problema de forma consequente. Preocupado com a insustentabilidade fiscal, Antonio Palocci, então ministro da Fazenda do primeiro governo Lula, propôs, em 2005, a adoção de um programa de ajuste de longo prazo, para impedir que o dispêndio público continuasse a crescer mais rapidamente que o PIB.

Infelizmente, a proposta foi torpedeada. Em embate dentro do governo, Dilma Rousseff, então ministra-chefe da Casa Civil, acabou levando a melhor. E o país perdeu excelente oportunidade de levar adiante uma reforma fiscal de grande alcance, que lhe teria assegurado trajetória bem mais promissora.

Anos mais tarde, em artigo em tom triunfalista, escrito em meio à euforia de 2010, Nelson Barbosa comemoraria o embate de 2005 como a derrota decisiva da “visão neoliberal” no governo Lula, que havia aberto caminho para os grandes feitos que vinham sendo logrados pela “opção desenvolvimentista”. Ver http://migre.me/hEprG

O afastamento de Palocci e sua substituição por um ministro dócil e afinado com Dilma Rousseff, em abril de 2006, abriram espaço para crescente e inédita preponderância da Casa Civil na condução da política econômica no segundo mandato de Lula.

A preocupação com as contas da Previdência logo cedeu lugar à negação peremptória da necessidade de reformas na área previdenciária. E, quando Lula mal havia cumprido nove meses do segundo mandato, a ministra Dilma Rousseff se permitiu anunciar que todas as preocupações com contenção de gastos haviam sido deixadas para o mandato seguinte.

A perspectiva de uma crise mundial, em 2008, foi o ensejo que faltava para que o governo partisse de vez para o expansionismo fiscal ostensivo, com a criação de um gigantesco orçamento paralelo no BNDES com ligação direta ao Tesouro. Acreditando que, num passe de mágica, se livrara da restrição orçamentária, o governo passou a se comportar como se não houvesse limites para o que poderia ser bancado com dinheiro público.

O resto da história é bem conhecido. Eleição de Dilma Rousseff, na esteira de apoteótica farra fiscal, em 2010. Insistência na aventura charlatanesca da “nova matriz macroeconômica” no seu primeiro mandato. E novo vale-tudo fiscal, em 2014. Os resultados aí estão. Uma economia sem perspectiva de crescimento, inflação a mais do dobro da meta e um quadro de devastação fiscal como há muito não se via.

O país agora se angustia com quanto lhe custará a penosa reparação dos danos, mas tem certeza de que a culpada pelo desastre não é a democracia.
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Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio

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