quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Rosângela Bittar - Teatro de vaudeville

- Valor Econômico

• À sorrelfa ou à matroca, governo não sai da sombra

O esquete em que foram protagonistas o presidente do Senado, Renan Calheiros, e o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, na segunda-feira, é um primor de equilíbrio político na corda bamba da verdade dos fatos.

O governo salvou Renan do precipício. Renan salvou o governo da inércia, permitindo a impressão, junto à sociedade, de que há consenso para votação do ajuste fiscal. O Brasil ainda aguarda salvamento.

Depois do gesto grandiloquente de devolução das medidas provisórias principais remetidas pelo Executivo e de ficar à reboque da Câmara, o primeiro estágio da tramitação, Renan não havia encontrado o caminho de volta ao conforto governamental. Encontrava-se em situação de fragilidade, à espera de ver seu nome na lista dos políticos alvejados na Lava-Jato.

Agora passou por um surto de reação política que custou-lhe pouco para quem está habituado a fazer concessões ao Executivo: foram 27 medidas propostas pelo Senado ao ministro da Fazenda, das quais 19 já tramitavam por ali há algum tempo, e oito eram novidades aleatórias, a serem submetidas a um escrutínio sem pressa.

O entendimento de aparência deu muito gás ao governo. Não para obter um ajuste fiscal real, com aprovação de reformas garantidas, mas para vencer alguns obstáculos políticos que lhe tiram o sono. Um deles foi ganhar a impressão que o governo prescinde da Câmara e pode deixar Eduardo Cunha, seu presidente de temperamento difícil, finalmente isolado, o que tenta fazer desde janeiro.

Dilma aboliu, nesse tabuleiro, uma das Casas do Legislativo. Em ficção tudo é possível, e a realidade vai demorar a aparecer. Até que o Senado coloque algo em condições de voltar à Câmara, como manda a Constituição, Inês já terá morrido três vezes.

Mas Renan agora tem álibi para voltar ao governo, pedir o que quiser para seu filho governar Alagoas, frequentar poderosos como um deles e criar condições de ter novamente voz forte no PMDB. Para Renan, o governo deu ainda consideração, o que não é pouco nas condições atuais.

A presidente Dilma ganhou muito mais. Além dos efeitos políticos e econômicos da impressão de entendimento, que pode lhe render uma análise mais fria de quem quer tirar ao Brasil os graus de investimento, ganhou garantias de aprovação do nome de Rodrigo Janot para comandar a Procuradoria Geral da República, de onde não se emitem sinais de que, até o momento, existam razões para Renan temer o pior. Talvez.

Outra vantagem, o governo passa a contar com os dois votos que Renan tem no Tribunal de Contas da União. Ontem mesmo estava agendada reunião do ministro Nelson Barbosa, do Planejamento, com os ministros do TCU que se encaixam nesse perfil para explicar pela enésima vez as razões de as contas do governo estarem como estão.

O pai do ajuste fiscal, Joaquim Levy, ganha o principal, a votação da medida que reduz a desoneração, essa sim já em ponto de bala, desde ontem, para ser entregue pelos senadores, agora cordatos, sem delongas. É o de que se precisa, realmente, para o momento, na área econômica.

Ninguém entrou nessa aventura da segunda-feira sem para-quedas. O vaudeville apareceu respaldado por consistentes agentes a cuja voz a política jamais se fez surda.

Depois do manifesto de apelo á governabilidade, assinado pelos presidentes da Fiesp e da Firjan, da área financeira surgiu o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, para em raras entrevistas à "Folha de S. Paulo" e a "O Globo", no sábado, dar vários recados, todos ao Congresso. Assumindo a proteção de Levy, nomeado por sua indicação ao posto para o qual havia sido convidado, Trabuco juntou-se ao mutirão da salvação. À "Folha", alertou que a crise política é mais forte que a econômica, o que, na sua opinião, abala a confiança e retarda a retomada. Recomenda a busca da convergência e assume a linguagem e o discurso do PT ao exortar os políticos a saírem "do ciclo do quanto pior, melhor". Ao Globo desenvolveu raciocínio parecido e atribuiu ao dissenso entre o Executivo e o Legislativo o atraso do processo de ajuste. Nenhuma originalidade.

Consolidou-se na economia atribuir ao Congresso a culpa por tudo o que o Executivo não consegue fazer na economia. O Congresso é obrigado a aprovar o que lhe pedem e, se negar, é porque quer a desgraça do país. As medidas que o governo sempre tomou, e que só dele dependem, estão fora do arsenal de soluções para o ajuste e a retomada, e descansam nas gavetas do depois. Respaldado por essa concertação, Levy foi à luta, e depois do teatro do Senado convidou à mesa a Federação dos Bancos para um diálogo mais amplo, em Brasília. Reforço total ao governo nessa disputa contra o dragão da maldade.

Apelos de financiadores de campanha, sabe bem o Executivo, são ouvidos no Legislativo. E o enredo do Senado vai demorar a chegar à Câmara, de volta, nesse regime bicameral que insiste em permanecer na Constituição. A Câmara, com ou sem Eduardo Cunha, terá que ser envolvida nas soluções.

O governo não tem como garantir a Renan que ele não constará de nenhuma delação premiada, mas pode lhe dar prestígio, consideração e instrumentos políticos para assentar bases para o futuro. Ele pode garantir ao governo, em primeiro lugar, a votação da medida de recuo na desoneração, a aprovação do nome de Rodrigo Janot, a aprovação das contas no TCU, e a ampliação do isolamento de Eduardo Cunha. Dividir para governar é um lema de fracos, e o governo está fraco.

São diferentes as soluções de saída da crise pela via Dilma-Levy-Renan daquela saída pela via Dilma-Lula, teatro também encenado no palco governamental. Aqui, embora falte lógica política, administrativa e também bom senso, uma vez que o convite a Lula para assumir um ministério inclui a renúncia da presidente ao comando do governo, Dilma estaria dando a ele, seu criador, foro privilegiado para enfrentar ameaças de inclusão na Lava-Jato. Haveria um rolo fenomenal: enquanto Dilma e Levy estivessem tocando um programa de ajuste, Lula governaria para os movimentos sociais e sindicatos, para o PT e para garantir a permanência do partido no poder. Uma confusão de ideias que, entretanto, não é nova. Seria só repetir o que já se faz hoje em larga escala.

Se o vice-presidente Michel Temer, instado pelo governo a retratar-se por haver dito que alguém precisa unir o país, advertiu que a realidade da crise lhe pedia ter postura e não o estava fazendo à sorrelfa, é certeza que os atores do vaudeville, todos, estão agindo à matroca.

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