domingo, 20 de setembro de 2015

Carlos Melo - Teatro de sombras

• Para Dilma e o PT, Temer nunca passou de um abajur: decorativo num cenário cheio de detalhes. Contudo, ele deixou a penumbra

- O Estado de S. Paulo / Aliás

Enquanto os homens firmam e reafirmam certezas, a história sorri seu riso de deboche e ironia. Nada é definitivo, nem permanente. Já se disse um dia que sólidos desmancham-se no ar. E é nesse ar que a política expressa sua natureza: sem controle, nuvens giram e quedam-se como circunstâncias; seus gases solidificam-se em fatos consumados. No Brasil, tem sido assim: vices presidentes da República, nunca lembrados para dar nome às ruas, são resgatados do limbo, transformando-se no oposto do quase nada que supostamente deveriam significar.

De tempos em tempos, a volatilidade política os retira dos bastidores e os coloca no palco. Às vezes, são esperança de virar a cena. Noutras, é porque não resta alternativa: o ator principal se desintegrou e o vazio clama preenchimento. Não foram poucos os casos. Floriano, Nilo Peçanha, Delfim Moreira, Café Filho, Jango, Sarney, Itamar e até Pedro II - príncipe é uma espécie de vice do Imperador que abdica. Uns mais relevantes, outros menos. O fato é que, no Brasil, volta e meia, os vices vão à ribalta.

Michel Temer, o vice de Dilma, está no aquecimento. Se, ao final, se juntará à galeria dos segundos que findaram em primeiros, ninguém saberá. Mais interessante é que, há menos de um ano, não se imaginava que pudesse subir ao palco, à exceção de um desastre ou de algum problema na saúde da presidente. Nunca esteve na trama central. Dilma e o PT o assinalavam decorativo: um abajur, num cenário cheio de detalhes. Foi menos uma escolha da candidata do que imposição do tempo de TV (do PMDB). Durante muito tempo, só isso.

Com efeito, Michel - como o chamam - jamais foi hipótese de poder, não possuiu expressão eleitoral, nem se sabe que tenha formulado algo mais impactante que o estapafúrdio “Distritão”. Chegou à presidência da Câmara não por qualidades de grande e personagem político ou do constitucionalista que, realmente, é. Mas por características valorizadas interna corporis: é um ser da conciliação, apaziguador de conflitos, articulador de interesses. Sobretudo, um cumpridor da palavra empenhada, confiável a seus pares. A antítese do PT.

Já disse alguém que petistas se constrangem com a relação com o PMDB. Não admitem ser vistos de mãos dadas com o parceiro de má reputação. Namorada feia que se esconde, no início do primeiro mandato, Lula desautorizou articulações com a legenda que, para o PT, é pragmática demais, fisiológica demais, voraz demais diante da pureza de virgem que petistas diziam guardar, mal sabendo do hímen complacente que a história revelaria. Para Dilma, Temer estava nesse contexto: inevitável, mas acessório.

Formal, polido, comedido e impessoal, às voltas com frações da federação peemedebista, Temer uniu no que foi possível os fragmentos regionais e sub-regionais, a mixórdia de interesses dispersos do partido. Surgiu como interlocutor crível, confiável. Presidente do PMDB, expressava o pacto, o acordo mínimo, o fio de uma unidade precária, o nó em pingo d’água. Retirado do chão do parlamento, foi consenso possível para a presidência da Câmara. Mais tarde, o aglutinador do apoio à Dilma, em troca das raspas, dos restos e da prontidão, no Jaburu.

Naturalmente, não houve liga. Dilma, o oposto de Temer, não carecia de vice. Em sua suposta autossuficiência, a presidente mais que se bastava, preferindo os que ecoam sua voz interna. Ao contrário de Temer, a presidente é visceral, explosiva, espalha-brasas e chuta-cristaleira.

Paradoxalmente, centralizadora e incapaz de construir unidade. Enquanto a economia e a popularidade permitiram, a figura do vice não teve mesmo importância. Menos que sombra, foi penumbra.

Mas, veio a tempestade de chover granito que rachou cabeças e inundou o pasto. Vacas tossiram, engasgaram, foram para o brejo. “Quem unificaria a base, quem falaria a pragmática língua do Congresso?”, perguntaram-se tardiamente os dilmistas. A Michel coube o serviço profissional: alimentar leões e saciar a tigrada - nos bastidores, porém; longe da plateia. Se não pertencia à companhia por que, afinal, lhe dar as luzes? Seria apenas mais um ajudante de circo.

Chamado “mordomo de filme de terror” na fita macabra que o governo desenrola, vai, porém, tomando a cena em virtude dos inúmeros defeitos de Dilma, os quais realçaram sua presença, dando a seu mero aprumo o status de qualidade. É aglutinador, menos propenso aos vícios do ego, às certezas da ideologia. Descomprometido com o erro, sabe de cor o texto. Não tardaria, é claro, para que a entourage da prima-dona presidente e o coral de tragédia da oposição se incomodassem com sua visibilidade, forçando-lhe o tapete sob os pés.

Isso fez com que se reposicionasse: neste momento, abandonou a coxia e já beira o palco. Aquece-se sob as expectativas da plateia. Ensaia cacos sincericidas e irrita o elenco, mas, agradando produtores, chama a atenção dos patrocinadores e, aos poucos, se faz conhecer pelo grande público. No teatro da política nacional, vices presidentes, definitivamente, nem sequer são nomes de rua. Mas, de quando em quando, assumem o roteiro.
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Carlos Melo é cientista político e professor do Insper

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