segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Denis Rosenfield - Transparência

- O Estado de S. Paulo

A proposta de Orçamento da União, enviada com déficit ao Congresso Nacional, é, na verdade, uma afronta aos cidadãos deste país, que pagam altos impostos e contribuições e gostariam, com toda a razão, que o governo exercesse as suas responsabilidades. Manifestamente, o Estado brasileiro, tal como concebido pelo atual governo, não cabe dentro de sua economia.

Um cidadão comum deve, responsavelmente, fazer a conta de suas receitas e despesas, da mesma forma que qualquer empresa. Trata-se de um princípio básico da economia que vale – ou deveria valer – para uma entidade pública que vive de recursos alheios, sociais. A proposta da presidente Dilma Rousseff eximiu-se dessa responsabilidade básica e procurou transferi-la para o Congresso, o que só fez aguçar a crise política e abalar ainda mais a sua credibilidade.

Um dos argumentos utilizados é o de que a atual proposta orçamentária prima pelo realismo e pela transparência. Como assim? A proposta orçamentária de 2014 e sua execução teriam sido, então, obras de ficção? Como pode o mesmo governo defender a transparência neste ano e não no ano anterior? A lógica dependeria de mera conveniência política?

Isso significa que a proposta orçamentária de 2014 não se caracterizava pela transparência e teria obedecido a meros objetivos eleitorais, como se os recursos dos contribuintes pudessem ser utilizados arbitrariamente, ao sabor dos ventos.

Não deveria, portanto, surpreender que o Tribunal de Contas da União (TCU) se esteja debruçando com tanto rigor sobre essas contas, pois se houve irregularidades seus autores devem ser responsabilizados. A presidente Dilma encontra-se diante de um problema concreto de não aprovação de suas contas, com as consequências daí derivadas.

Para evitar qualquer tipo de mal-entendido, frisemos que tal questão não pode ser traduzida politicamente como um acerto eleitoral, do tipo terceiro turno. Trata-se tão somente de um princípio republicano, que demanda a sua correta aplicação. A transparência deve ser aqui o critério.

Não se pode politizar a transparência, sob pena de cairmos na autocracia e em governos que mascaram contas. Os cidadãos têm todo o direito de saber qual é o destino de seus impostos e contribuições. E a própria democracia que está em questão.

O governo defronta-se, agora, com o julgamento das pedaladas fiscais e do não contingenciamento de despesas que deveria ter sido feito. Para se ter uma ideia do montante envolvido, haveria um montante de R$ 104 bilhões cuja utilização deveria ser esclarecida.
O discurso eleitoral do ano passado apresentou uma realidade inexistente, enquanto a existente foi simplesmente mascarada. Não deveria, portanto, espantar que as crises econômica e política tenham alcançado a atual dimensão.

As pedaladas configuram operações de crédito disfarçadas, proibidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Houve, portanto, o adiamento de pagamentos do Executivo mediante a utilização de bancos públicos.

O objetivo do governo consistiu em ocultar um déficit fiscal, presente já naquele momento. E para isso não hesitou em infringir a lei (LRF). Logo, não tem o menor sentido o discurso da presidente de que apenas agora teria visto o alcance dos problemas enfrentados pelo País.

No caso de o governo ter deixado de fazer o contingenciamento de despesas, ele não seguiu o que estipula a lei, em clara transgressão – o que fez, aliás, igualmente em anos anteriores. E se deixou de o fazer, é porque seu motivo era político – as eleições –, e não a obediência aos princípios republicanos.

Sabendo, por exemplo, que a arrecadação seria menor do que a esperada, além de não contingenciar recursos da ordem de R$ 28,5 bilhões, liberou R$ 10,1 bilhões sem autorização do Congresso, mediante decreto presidencial. A legalidade não foi seguida. Prejudicou sobremaneira a governança pública, ocultou os dados e desprezou o princípio público da transparência.

Ou seja, estamos diante de uma esculhambação voluntária das contas públicas!

Nesse sentido, o relatório do ministro João Augusto Nardes (TCU) é da maior importância por reafirmar um princípio de discussão republicana das contas públicas. Se o governo se sente acuado, é porque não soube exercer a responsabilidade que lhe incumbiria. O relator concedeu amplo direito de defesa ao Executivo para que esclareça as decisões tomadas. A questão é técnica, republicana, e não partidária. Querer partidarizar essa discussão significa privatizar a República.

Procurar denegrir o trabalho do TCU significa um imenso desserviço à Nação. A governança pública tornou-se uma das principais diretrizes da atuação desse tribunal, preocupado igualmente em verificar a legalidade e a conformidade dos atos dos gestores públicos.

Com tal fim houve uma remodelação de sua estrutura administrativa, tendo como orientação uma maior coordenação e especialização de suas unidades técnicas. Seu corpo de funcionários é altamente capacitado. Trata-se da exigência mesma de um País moderno, atento ao uso de seus recursos.

A corrupção nasce do descontrole e da falta de transparência na utilização dos recursos públicos. Se os atos dos gestores não forem fiscalizados, o desvio de recursos e vários outros tipos de crime serão a consequência. Se o País vive hoje uma crise em que a corrupção explodiu, por assim dizer, é porque foi escondida e, segundo alguns, justificada por um bem social/partidário maior.

Note-se que tão logo a Justiça Federal do Paraná liberou as informações relativas à Operação Lava Jato, o então presidente da Corte, ministro Nardes, determinou a instauração de um grupo de trabalho para analisar toda a documentação. Houve, assim, uma coordenação entre instituições republicanas, num claro indício do amadurecimento institucional do nosso país, em que pesem todas as forças políticas que se insurgem contra essa nova institucionalidade. O futuro do País disso depende!
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*Denis Rosenfield é professor de filosofia na UFRGS

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