domingo, 6 de setembro de 2015

Ferreira Gullar - Buscar o perdido

• Fiquei um tempo tentando esquecer o texto perdido, mas não resisti: 'Tenho que achar, custe o que custar!'

- Folha de S. Paulo / Ilustrada

Pior do que perder uma coisa é lembrar que a perdeu e tentar achá-la. Melhor mesmo é esquecer o perdido, mas a gente não manda nisso, já que, de repente, você se lembra: e que aquele livro que o Mário me deu, onde o meti?

É preferível tentar não responder a essa pergunta, e muito menos ir procurar o livro. Mesmo porque, se for procurá-lo, não o achará. "Eu jurava que estava nessa prateleira da estante e não está". Diga-se isso ou frase parecida, ligue a televisão para ver seja o que for e esqueça o livro.

Pois bem, outro dia dei pela falta do único exemplar da primeira edição de meu livro "A Luta Corporal". Um amigo o encontrara num sebo e, supondo que eu não tivesse nenhum exemplar, comprou-o e me deu de presente. Já faz alguns anos. E não é que o livro sumiu?!

Procurei na tal prateleira onde devia estar, junto a outros livros meus e, para minha surpresa, ali não estava. Não entendi nada, mas busquei-o em outra estante, depois noutra, e nada. Sumira mesmo.

Nessa procura, deparei com uma pasta onde guardo textos antigos que mantive inéditos, exceto um deles, e descobri que ali não está um conto chamado "Osíris Come Flores".

Liguei para Cláudia, achando que o tinha incluído na exposição comemorativa de meus 70 anos, que ela ajudara a bolar. Respondeu que eu realmente lhe mostrara aquele texto, mas que não fora incluído na tal exposição. E acrescentou: "Estava numa pasta de plástico". Pois é, estava, mas já não está.

Fiquei um tempo tentando esquecer o texto perdido, mas, outro dia, não resisti: "Tenho que achar esse texto, custe o que custar!" disse a mim mesmo, e fui para o armário onde guardo as pastas com o que escrevi e o que escreveram sobre mim, além de revistas e recortes de jornal. São oito prateleiras atochadas de pastas, envelopes e embrulhos.

A esta altura, o leitor deve ter percebido que procurar não é minha vocação. Ainda assim, sentei-me diante do armário e comecei pacientemente a examinar pasta por pasta, envelope por envelope, embrulho por embrulho.

A certa altura, me cansei, fui até a cozinha esquentar um café, tomei o café e me sentei na sala para respirar. Algum tempo depois, voltei à árdua tarefa: encontrei alguns poemas inéditos, de que nem me lembrava mais, e alguns textos sobre arte que nunca publicara.

Foi então que, para azar meu, lembrei-me de uma série de contos que escrevera na época de "A Luta Corporal" e que eram bastante loucos. Dei-me conta, então, de que também haviam desaparecido. Terminei a busca extenuado e estressado com mais aquelas perdas constatadas. Foi aí que, para meu consolo, liguei para o amigo Augusto Sérgio, que tem o louvável hábito de recolher e guardar escritos meus.

Telefonei-lhe apenas para me queixar. Ele ouviu minha história e perguntou se "Osíris Come Flores" era inédito. Foi então que me lembrei de ele ter sido publicado num jornal alternativo, editado por Wlademir Dias Pino e de que saiu apenas um número.

Contei-lhe que tinha sido graças a esse conto que fui contratado para trabalhar na revista "O Cruzeiro", e que Herberto Salles, que dirigia o setor de revisão de textos da revista, lera o conto e gostara tanto que decidiu me contratar.

E qual era o nome do tal jornal alternativo?, perguntou-me Augusto, e eu não lembrava. Pois é, se soubesse o nome do jornal, seria possível tentar achar um exemplar e, assim, recuperar meu conto perdido. Bastaria uma cópia xerox.

Augusto concordou e se dispôs a procurar o jornal. Disse isso, mas não me lembro nem sequer do assunto tratado no conto.

Terminada a conversa, voltei à minha obsessão. E se o Wlademir não tiver nem um exemplar do jornal? E se ninguém o tiver guardado? Diante de tais possibilidades pessimistas, fui arrastado à minha obsessão, pois não me conformava em ter perdido não só o conto "Osíris", como também os outros textos escritos na mesma época. Voltei ao armário disposto a realizar uma nova procura, mais minuciosa e paciente.

E a fiz, mas em vão. Quando me faltava examinar as cinco últimas pastas, deparei-me com uma delas, de plástico manchado. Meu coração bateu forte: ela continha todos os textos perdidos. Inclusive o original de "Osíris Come Flores".

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