segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Alberto Aggio - De Hércules-Quasímodo e ornitorrincos

- O Estado de S. Paulo

Uma imagem de Euclides da Cunha ao caracterizar o sertanejo com que se deparava em sua viagem para cobrir a Guerra de Canudos pode ser mobilizada de maneira produtiva na construção de uma representação do País em meio a esta crise aguda: Hércules-Quasímodo. Uma alegoria surpreendente que associa um personagem da mitologia grega a outro que compõe a conhecida ficção de Victor Hugo cujo cenário é a Catedral de Notre-Dame, em Paris. O Brasil seria uma espécie de Hércules-Quasímodo, a figura de um gigante deformado, uma força bruta, de impossível conexão com qualquer narrativa edificante da Nação em busca da sua modernidade.

Esse Hércules-Quasímodo, como se sabe, vem de longe, atravessou o século e depois de cada fracasso emerge evidenciando as imensas dificuldades de se aproximar do seu suposto desígnio. Conscientes ou não, partilhamos essa história e, de crise em crise, reconhecemos que, apesar de vivenciarmos modernizações sucessivas, o moderno escorre por entre nossos dedos sem que possamos apreendê-lo coletivamente e seguir sua trilha. E assim, aparentemente, nos convencemos de que o Brasil faz jus a essa imagem que comunga simultaneamente força e grandeza, tropeço e repulsa a si mesmo.

Em Existe um Pensamento Político Brasileiro? (1994), Raymundo Faoro resgata a imagem de Euclides ao repensar os problemas históricos da “modernização nacional”. A coincidência com a turbulência que o País vivia devida ao processo de impeachment de Fernando Collor de Mello não é fortuita. O jurista gaúcho, notabilizado pelo seu Os Donos do Poder, de 1958, no qual examinara nossas raízes patrimonialistas, fazia um diagnóstico duro a respeito do fracasso sucessivo das modernizações vivenciadas pelo Brasil. Recorrendo à teoria das “vantagens do atraso” (Veblen), na qual se admite o avanço do capitalismo em países retardatários desde que orientado no sentido de buscar alcançar o patamar estabelecido pelos países precursores, Faoro enfatizou que as crises brasileiras eram provocadas pelo esgotamento do “dirigismo estatal” adotado com vista a mobilizar tais vantagens em favor da modernização. Seguindo esse argumento, advogava que até o final do século 20 o País não havia descoberto o que ele chamava de a “pista da lei natural do desenvolvimento” que lhe proporcionaria um encontro histórico com a modernidade. Um desígnio que deveria ser cumprido em etapas sucessivas, desconsiderando quaisquer tipos de atalhos. Faoro compartilhava a crença de que Lula e o PT poderiam ser os atores que iriam possibilitar ao País essa descoberta e essa reviravolta na trajetória do Brasil. Ele morreu em 2003 e, assim, torna-se insondável, porém não insuspeitável, o que ele nos poderia dizer a respeito dos dias que correm.

Com outros autores, Faoro compartilhava a visão de que o Brasil era a expressão de uma história sem síntese. Nossas modernizações se inscreveriam num tempo circular, numa “história fossilizada”, num “cemitério de projetos, de ilusões e de espectros” em que modernizações sepultavam modernizações, sem que o moderno pudesse enfim se estabelecer. Estava seguro de que o desenvolvimento não poderia ser “uma matéria de decretos” e uma elite política não poderia, pela compulsão e pela ideologia, “gerar a Nação”. Duvidava desse dirigismo e lamentava a ausência do liberalismo, um “elo perdido” da nossa trajetória histórica. A metáfora de Euclides servia-lhe para representar o Brasil como “uma enfermidade”, uma deformação produzida historicamente.

Hércules-Quasímodo, essa representação de uma “história torta” que, mesmo assim, segue seu curso, ganharia outra configuração num tempo mais próximo de nós por meio de uma metáfora de caráter similar. Com o petismo triunfante, a partir de 2002, o Brasil anunciava mudanças sem precedentes.

Rapidamente elas ganhariam a conotação de uma “grande transformação”, anunciando a mais recente tentativa de mobilizar, com recursos modernos, as “vantagens do atraso” com vista à sustentação e reprodução de uma elite dirigente e de seu projeto de modernização. De acordo com o sociólogo Chico de Oliveira, esse Brasil petista seria como um ornitorrinco, um animal exótico, mescla de mamífero, ave e réptil, único em toda a “história natural”. O sentido dessa nova alegoria se prendia à incapacidade de se caracterizar um processo cuja natureza estava no fato de que a classe operária estaria a comandar, a partir de Lula, a revolução capitalista no Brasil, invertendo os termos gramscianos e realizando uma espécie de “hegemonia às avessas”.

Contudo o lulismo não processou o trânsito das “vantagens do atraso” para as “vantagens do moderno”, distanciando-se de um projeto que superasse o dirigismo, o patrimonialismo e o corporativismo e estabelecesse um novo nexo entre mercado, democracia, autonomia e bem-estar. Os governos de Lula e do PT se inserem, portanto, no longo processo de “revolução passiva à brasileira” (Luiz Werneck Vianna), transformista e inconcluso. Houve alguma ilusão de que poderia sobrevir um momento de clivagem no qual se reverteriam os termos da revolução passiva e a mudança pudesse dirigir a conservação. Mas esse momento não veio e, ao que tudo indica, não virá.

Há um caráter histórico no fracasso do petismo, que mostra, mais uma vez, que não haverá possibilidades de seguirmos em frente reproduzindo o passado de maneira farsesca. Cada dia que passa o País acumula sinais tenebrosos. A crise anuncia-se como inaudita, com regressão econômica e grande desorientação política, apenas comparável à magnitude da crise ético-moral. Os sinais são de mais um ciclo de modernização que colapsa. O “Brasil petista” foi tão somente um autoengano no qual Hércules-Quasímodo e ornitorrincos vagueiam sem direção.

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Alberto Aggio, historiador. É professor titular da Unesp

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