domingo, 18 de outubro de 2015

Luiz Sérgio Henriques - Duas ou três notícias do front

- O Estado de S. Paulo

Para o bem e para o mal, parte do vocabulário da arte e da ciência política provém de situações bélicas que marcaram época pela crueldade e amplitude dos sacrifícios envolvidos. No grande conflito entre 1914 e 1918, as populações das nações em confronto viram, atônitas, seus exércitos se enfrentarem por anos a fio enterrados em trincheiras e casamatas insalubres, que multiplicavam exponencialmente os sofrimentos, além de requererem, para sua manutenção, a mobilização integral de sociedades e suas máquinas econômicas, na retaguarda.

“Guerra de trincheiras”, então se dizia, em oposição às ofensivas arrasadoras das guerras ditas de movimento, que ainda teriam duas décadas depois reedição trágica com as Blitzkriegen nazistas. Um tipo de guerra, a de trincheiras, que, aplicada à teoria política, implica não só um desenvolvimento mais lento e penoso dos eventos, ainda que estes possam precipitar-se de um momento para outro, como também uma situação em que as tropas antagônicas se assediam reciprocamente por todo o tempo, à espera de forçar a passagem nas linhas de menor resistência.

A imagem de trincheiras e assédio recíproco é uma boa chave para entender os últimos acontecimentos. Em estado de sítio encontra-se, desde logo, o governo Dilma Rousseff, vítima não inocente daquilo que renomado intelectual conservador chamava, em passado que já se distancia, de “reversão de expectativas”. Uma reversão fortemente negativa, assinalada, entre outros fatos, pela indicação de um ministro da Fazenda proveniente das hostes “neoliberais”. A presidente Dilma, antes ainda do pontapé inicial do segundo mandato, passou a dar a nítida impressão de estar condenada a fazer a política do adversário, adotando políticas “rudimentares” de ajuste. Um sinal de incapacidade de gerir a coisa pública em conjuntura adversa, quando o Executivo já não tem recursos para agir como condomínio de forças opostas, reunidas pela percepção, mais ou menos correta, de ter suas necessidades fundamentais atendidas.

Tal “terceiro turno” providenciado pelo governo contra si mesmo restou sem explicação, a não ser a de ter sido ditado pela necessidade mais feia. Nenhum sinal de autocrítica – infelizmente, palavra desgastada no arsenal da esquerda por falta de uso corajoso e coerente. Só funcionam entre conversos as explicações mais recentes de intelectuais petistas, segundo os quais a economia ia bem e o terrorismo de mercado é que teria alimentado, mais intensamente na reta final de 2014, uma espécie de profecia de desastre que se autocumpre. Na verdade, se não for uma comparação exagerada, o segundo mandato já começou, e se arrasta, sob o signo de uma imagem icônica em nossa história política, a de Jânio Quadros com os pés trocados na ponte de Uruguaiana e atarantado com o tumulto ao redor. Uma foto, diga-se de passagem, tirada pouco antes do episódio da renúncia, no fatídico agosto de 1961.

A ideia de estado de sítio se reforça com os procedimentos investigativos da Operação Lava Jato, do TCU e do TSE e com as mais recentes mexidas no tabuleiro por parte das oposições, a começar pelo pedido de impeachment protocolado com a prestigiosa assinatura, entre outras, de uma lenda viva da resistência ao arbítrio policial na ditadura, o jurista Hélio Bicudo. A Operação Lava Jato, a exemplo da Mãos Limpas, operação que dissolveu o sistema de partidos proveniente do segundo pós-guerra e deu fim à chamada Primeira República italiana, guarda o potencial de lançar por terra o sistema de poder que se estava a construir em nosso país e iluminar as conexões perversas entre partidos, instituições e empresas estatais e privadas.

Bem verdade que o resultado de uma operação de tal envergadura pode ser a repulsa à política e a denúncia genérica contra a “partidocracia”, forma degenerada de condução da coisa pública por partidos transformados em meros grupos de ocupação do poder. Para evitar as ondas de antipolítica, em parte inevitáveis – uma espécie de “que se vayan todos”, grito desesperançado que costuma seguir-se às grandes decepções –, fundamental, entre as peças que se movem e participam do cerco, o revigoramento do centro democrático, com sua vocação para o diálogo e a composição entre extremos radicalizados. Significativos, neste front, os movimentos cautelosos de Michel Temer, que, mesmo se abstendo de grandes gestos e dando por vezes a aparência de imobilidade, é voz que busca contornar estratégias de confronto e tensão, como aquelas que em geral nascem do bunker governista em face dos órgãos de controle da República. Se vozes como essa se multiplicarem, estará dado o fundamento para a difícil passagem à frente e para a reconstrução futura, naturalmente sem exclusão da esquerda política – requisito essencial de uma sociedade moderna.

A guerra de trincheiras requer não só paciência e obstinação das tropas, como também o envolvimento de massas humanas para lhes dar apoio e sustentação. Nisso o ponto extremamente frágil do núcleo oposicionista mais significativo, cuja ligação com as “ruas”, que tentam renovar nossa esquálida paisagem desde junho de 2013, é mais virtual do que real, mais postulada do que efetivamente testada e comprovada.

Estabelecer os fios, visíveis e invisíveis, dessa ligação é tarefa de primeira ordem, pois a guerra de trincheiras precisa de atores que não apostem em terra arrasada nem em investidas de “choque e pavor”. Salvo casos extremos, dos quais estamos, felizmente, distantes, não se trata de destruir inimigos e salgar suas terras, mas de fazer e refazer continuamente o delicado consenso em torno das instituições democráticas, sem as quais estamos destinados, sem perdão possível, a uma austera, apagada e vil tristeza.
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Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil

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