sábado, 3 de outubro de 2015

Miguel Reale Júnior - Impeachment

- O Estado de S. Paulo

Três questões merecem ser abordadas em face do impeachment.

A primeira refere-se ao mantra repetido pelos petistas de diversa condição: “Trata-se de um golpe”. Collor, na sua defesa, também bradava ter recebido 35 milhões de votos, sendo o processo de impeachment um golpe. Deixo a resposta a este “argumento” a Nelson Jobim e a Michel Temer. 

Jobim, autor do parecer da Câmara dos Deputados que acolheu o pedido de impeachment, escreveu: “Bendito o golpe em que seu espectro se exaure na fiel observância de comandos constitucionais! 

Maldita a democracia em que o voto popular possa constituir-se em cidadela da impunidade!”

Em debate na Associação dos Advogados, em 14 de agosto de 1992, compondo o painel com Fábio Comparato, Luiz Roberto Barroso, o saudoso Geraldo Ataliba e eu, Temer disse: “A ideia de crime de responsabilidade não é uma ideia de perseguição ao presidente da República, mas, diferentemente, é uma ideia de pacificação nacional” (Impeachment – aspectos jurídicos, Revista do Advogado, set. 1992, p. 45).

A segunda questão diz respeito à possibilidade de responder a presidente por fatos ocorridos no mandato anterior. Não subscrevo a opinião de juristas no sentido de haver continuidade administrativa, constituindo um só mandato. No entanto, decisões da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal me convenceram de que no plano ético e político fatos de mandato anterior, seja do Executivo como do Legislativo, podem ser, com base no princípio da moralidade, objeto de julgamento em novo mandato.

Dois deputados às vésperas de terem abertos processos no Conselho de Ética renunciaram, escapando da perda da elegibilidade. No pleito seguinte foram reeleitos e na nova legislatura instaurou-se processo no Conselho de Ética pelos fatos do mandato anterior.

Em mandado de segurança, o Supremo considerou absolutamente legítima a persecução em mandato posterior por atos do mandato anterior. Lembro parte do preciso voto do ministro Celso de Mello (Mandado de Segurança n.º 24.458/DF), no qual explicitou ter o Supremo Tribunal firmado orientação no sentido de o princípio da unidade de legislatura não impedir a cassação de mandato legislativo, por falta de decoro parlamentar, por fatos ocorridos em legislatura anterior. Assim, considerou-se legítimo as Casas legislativas instaurarem procedimento de caráter político-administrativo destinado a tornar viável a decretação da perda do mandato por fatos praticados na legislatura anterior e a serem julgados na legislatura em curso.

Frisa Celso de Mello que “o sistema democrático e o modelo republicano não admitem nem podem tolerar a existência de regimes de governo sem a correspondente noção de fiscalização e de responsabilidade. Nenhum membro de qualquer instituição da República está acima da Constituição, nem pode pretender-se excluído da crítica social ou do alcance da fiscalização da coletividade”.
Dessa maneira, a responsabilidade por atos do mandato anterior decorre do princípio da moralidade, fundamento da República, e se aplica a quaisquer dos Poderes constituídos.

A terceira questão diz respeito a manifestações no sentido de que nada houve de grave da parte da presidente de modo a ofender a Constituição, com a qual “não se brinca”. Opinião equivocada, como se verá..

Resumindo, a acusação prende-se a dois fatos previstos na Constituição, artigo 85, V e VI, e na Lei do Impeachment, artigo 9, item 3, e artigo 10, itens 6 e 9. O primeiro, relativo à ofensa ao dever de zelar pela moralidade administrativa, (artigo 85, V da Constituição), pois ao assumir a Presidência deixou de responsabilizar subordinados pela ofensa à honestidade na condução da Petrobrás, indicando testemunhas serem esses fatos de conhecimento do Planalto tanto no governo Lula e como no de Dilma, que fora por dez anos presidente do Conselho de Administração da empresa. Disse Dilma em 2009: “A Petrobrás de hoje é uma empresa com nível de contabilidade dos mais apurados do mundo”.

Diz o artigo 9, item 3, da Lei do Impeachment ser crime de responsabilidade não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição. A prevaricação foi manifesta, deixando lavrar a mais desenfreada apropriação de numerários, muitos levados, para a tesouraria de seu partido e em auxílio às eleições de 2010 e 2014.

Outros fatos graves foram as pedaladas, que afrontaram um dos fundamentos da economia, ou seja, a correção e a higidez financeira do Estado (artigo 85, VI da Constituição). Sem as pedaladas, que permitiram disfarçar o déficit público, não estaríamos na situação econômico-financeira calamitosa em que nos encontramos. Empréstimos vedados com a Caixa Econômica e o Banco Do Brasil, bem como decretos sem número, abrindo créditos suplementares com base em resultado financeiro, sem crivo do Congresso, constituem infrações à Constituição (artigos 85, VI, e 167, V), também previstas na Lei do Impeachment como crimes de responsabilidade, nos artigos 9.º e 10.º.

Além do mais, falseou-se um superávit primário ao deixar-se de contabilizar como dívida os empréstimos contraídos, omitindo-se dado relevante que induziu em erro o Congresso e os agentes econômicos.

A presidente “gerentona” e centralizadora tinha constantes reuniões com o secretário do Tesouro Arno Augustin, considerados ambos unha e carne. Assim, se a responsabilidade pela condução das contas públicas é sempre do chefe do Executivo, no caso, em vista da intimidade com o secretário do Tesouro, autor confesso das pedaladas, e em face dos decretos por ela assinados, a responsabilidade pessoal da presidente brota mais evidente.

Se aprovado o impeachment, que tem base fática e jurídica, o futuro não pode ser a troca de seis por meia dúzia, sendo essencial patriótico acordo nacional nos campos político e econômico.

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Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular senior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

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