quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Demétrio Magnoli - O afeto que se encerra

• Nas periferias das cidades, a ‘nova classe média’ adquiriu materiais de construção e eletrodomésticos, mas não experimentou mudanças em saúde pública ou mobilidade urbana

- O Globo

O PIB de 2015 apresentará retração em torno de 3%. Há consenso, entre os analistas, de que 2016 conhecerá nova redução do PIB, mas as apostas variam largamente no intervalo de 1% a 3,5%. Na história registrada, só uma vez o Brasil experimentou recessão durante dois anos sucessivos: foi no alvorecer da década de 1930, sob o impacto do crash da Bolsa de Nova York, quando o mundo descia a ladeira da Grande Depressão. Um produto da queda cataclísmica será o cancelamento quase completo das chamadas “conquistas sociais” do lulopetismo.

Os números estão num estudo da Tendências Consultoria Integrada. Entre 2006 e 2012, cerca de 3,3 milhões de famílias ascenderam das classes de renda D e E à classe C, que ganhou o rótulo ilusório de “nova classe média”. No horizonte de 2017, a reversão do ciclo, ritmada pela inflação e pelo desemprego, empurrará 3,1 milhões dessas famílias de volta ao ponto de partida. Segundo Adriano Pitoli, coordenador da pesquisa, “a mobilidade que houve em sete anos deve ser praticamente anulada em três”. Tudo indica que, nas palavras dele, “estamos vivendo, infelizmente, o advento da ex-nova classe C”.

Lula lançou o Fome Zero, em janeiro de 2003, na cidade mineira de Itinga, no Vale do Jequitinhonha. Dez anos antes, na sua segunda campanha presidencial, conhecera Teresa Fernandes Pessoa, que partilhava um cubículo com oito filhos. O candidato pediu-lhe que “rezasse porque, se fosse eleito, iria me dar uma casinha”. Teresa rezou e votou, três vezes, até reencontrá-lo como presidente. Nunca ganhou a casinha, mas obteve o cadastro do Bolsa Família, pelo qual ainda agradece. Agora, contudo, uma reportagem do “Diário de Pernambuco” flagrou-a reclamando das despesas de luz e água, que consomem metade dos R$ 140 transferidos mensalmente pelo programa. Ela não tem outra renda e voltou à antiga prática, quase esquecida, de pedir arroz, farinha e feijão aos vizinhos.

O fenômeno do retorno à miséria lança um jato de luz sobre aquilo que deveria ser descrito como a economia política do lulopetismo. Na tradição do pensamento de esquerda, conquistas sociais decorrem de mudanças econômicas estruturais. Mas, por meio de programas de transferência de renda e políticas de estímulo ao consumo, Lula e Dilma conferiram à expressão uma estreita tradução monetária. Sobre o pano de fundo do ciclo internacional favorável, os aumentos reais do salário-mínimo e das aposentadorias, junto com a expansão do crédito e o Bolsa Família, proporcionaram a dezenas de milhares de famílias uma ascensão social tão rápida quanto precária. Nessa trajetória, encantados pelas luzes do poder, os intelectuais de esquerda rasgaram seus próprios textos teóricos para cantar as virtudes de um modelo orientado exclusivamente por imperativos eleitorais. A Teresa icônica, que volta a se equilibrar na corda bamba da solidariedade dos vizinhos, é uma personificação do fracasso político do lulopetismo e da falência intelectual de seus cortesãos nas universidades.

Nos três mandatos da “era de ouro” do lulopetismo, os serviços públicos permaneceram à margem das prioridades de governo. As “mães do Bolsa Família” ganharam um passaporte para o supermercado, mas as “filhas do Bolsa Família” continuaram excluídas do acesso a escolas de qualidade. Nas periferias das cidades, a “nova classe média” adquiriu materiais de construção e eletrodomésticos, mas não experimentou mudanças nos campos da saúde pública ou da mobilidade urbana. “É bom ver quantos brasileiros sabem enxergar também a metade cheia do copo, e não só a parte vazia!”, tuitou a seus fãs Luiza Trajano, a proprietária do Magazine Luiza, que tem centenas de milhões de bons e sonantes motivos para ignorar “a parte vazia”. Mas é nessa “metade” do “copo” que está fixada a imagem de uma fraude política de dimensões históricas.

No início de 2014, quando a Luiza do magazine difundiu sua mensagem otimista, o IBGE constatou que o peso da indústria na formação da riqueza nacional recuara para o menor nível, desde 2000. A desindustrialização brasileira não provocou, porém, redução significativa do emprego industrial. 

Atrás da aparente contradição, oculta-se a forte retração relativa da produtividade industrial, que decorre da carência de investimentos em capital fixo e inovação tecnológica. O fenômeno reflete a persistência dos elevados custos logísticos, tributários e financeiros que se agravaram pela política de fechamento comercial. Na base subterrânea da reversão das “conquistas sociais” está uma dramática perda de competitividade da indústria brasileira, que será temporariamente camuflada pela desvalorização cambial. O ajuste fiscal de Dilma e Levy não toca nas raízes da crise, assentadas sobre o lodo ideológico do lulopetismo.

No poder, o lulopetismo deslocou-se sociologicamente dos trabalhadores e das classes médias urbanas para o “povo pobre”, ou seja, na direção das classes D e E em ascensão rumo à “nova classe média”. A reeleição de Lula e os dois triunfos eleitorais de Dilma derivaram da sedução hipnótica exercida pelas políticas de renda, crédito e consumo. Os votos do Nordeste, das regiões deprimidas do Centro-Sul e dos anéis periféricos das metrópoles soldaram a hegemonia lulista. A “era Vargas” durou longos 15 anos, entre 1930 e 1945. Se Dilma sobreviver à borrasca em curso, a “era Lula” completará 16 anos. Contudo, no outono do patriarca, os pobres desertam em massa de sua trincheira.

Na economia, voltamos ao ponto de partida. Na política, porém, o porto original não mais existe. Maurício de Almeida Prado, de uma consultoria com foco na renda baixa, explica que a “ex-nova classe C” adquiriu nos anos gordos, junto com os celulares, uma experiência indelével: “É um novo tipo de classe baixa: mais conectada, escolarizada e, de certa forma, até mais preparada”. Há futuro, Lula, apesar de você.
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Demétrio Magnoli é sociólogo

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