segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Marcos Nobre: O STF foi tragado pela crise

• O sistema político está ameaçado de desintegração

- Valor Econômico

O intervalo entre a primeira e a segunda temporada do domínio do Judiciário sobre o sistema político foi mais curto do que se anunciava. O Executivo e o Legislativo aproveitaram a entressafra do final de setembro até o final de novembro para tentar emplacar uma produção própria. Saiu um espetáculo mambembe, com baixos índices de audiência. Mas foi o momento em que esses dois Poderes tentaram construir uma narrativa com ritmo e enredo próprios. Durou o que durou.

Quando submetida à temporalidade e à lógica do Judiciário, a política trava. Foi o que aconteceu por nove meses em 2015, é o que volta a acontecer agora, a partir da prisão do senador Delcídio do Amaral e do banqueiro André Esteves. Mas há elementos novos na segunda temporada que representam uma aceleração vertiginosa do ritmo narrativo. Ao estabelecer uma nova interpretação do flagrante delito de crime inafiançável para ordenar a prisão de um senador no exercício do mandato, a decisão do STF introduziu o estado de pânico em um sistema político já tomado pelo desespero. Com a nova interpretação, baseada na ideia de "estado de flagrância", a ameaça de exclusão do jogo se tornou agora imediata. Qualquer representante no exercício do mandato pode ir para a cadeia se houver indícios de que seu crime é continuado e, segundo a nova interpretação, equivalente a flagrante.

Não há acordo político que dure um dia com tal grau de incerteza. Caso não surjam novas ações no sentido de assegurar um patamar mínimo de confiança e de estabilidade, a decisão do STF tem o potencial de desintegrar o sistema político. Ficou ainda mais distante o urgente estabelecimento de um pacto minimalista capaz de garantir tanto a continuidade sem reservas da Lava-Jato como um nível elementar de estabilidade e confiança para atravessar a turbulência. Não há mais coordenação de partidos ou grupos. A luta por um lugar nos botes salva-vidas é selvagem. E trocar o atual governo por outro qualquer não vai consertar o rombo no casco do navio.

Há ainda o acordo de leniência firmado pela Andrade Gutierrez, que expõe a lógica profunda do regime de delações. Trata-se de um castelo de cartas. Não tendo condições de comprovar o que disse, o delator só consegue homologar sua delação se entregar outro potencial delator. Foi muito provavelmente essa a razão que levou o filho do delator Nestor Cerveró a gravar a conversa com Delcídio do Amaral, por exemplo. O mesmo se aplica a empresas. Acordos de leniência e termos de compromisso de cessação só se viabilizam mediante a apresentação de novos fatos delituosos, de novos nomes envolvidos nos esquemas. Dito de outra maneira, a desconfiança generalizada que caracteriza hoje o sistema político se espraiou com a mesma magnitude para os grandes atores econômicos.

Um senador no exercício do mandato foi preso unicamente com base em uma gravação. A Polícia e o Ministério Público não foram capazes de apresentar qualquer indício de que Delcídio do Amaral tenha praticado qualquer ação concreta com vistas à obstrução da Justiça. É um caso para o Conselho de Ética do Senado e não para uma ordem de prisão do STF. À falta de elementos adicionais de prova postos à disposição do escrutínio público, não é nada fácil entender o fundamento da decisão que levou André Esteves à prisão, se este se restringir a menções ao seu nome em uma gravação, que é o que consta da sua ordem de prisão.

O valor da contribuição da Operação Lava-Jato e de todas as suas ramificações para o aprofundamento da democracia no país é simplesmente inestimável. Não há vivência democrática efetiva enquanto uma sociedade não tem um mínimo de convencimento de que todos são de fato iguais perante a lei. O fato é que a decisão do STF não está à altura dessa promessa.

Com sua decisão, o STF agiu segundo a mesma lógica do desespero que dirigiu as ações do conjunto do mundo político ao longo de 2015. Interpretou a situação como uma escolha entre sua posição institucional ou a fímbria de estabilidade que se tinha alcançado e escolheu a autopreservação. Isso porque a gravação poderia vir a ser interpretada como colocando em risco sua autoridade, porque poderia vir a ser entendida como colocando sob suspeição perante a opinião pública a posição e a isenção do STF como instância de referência última de todo o sistema judiciário.

Não se trata mais apenas de um sistema político travado pela temporalidade do Judiciário. Agora, é o próprio Judiciário que foi tragado pela crise, que passa a ser uma crise político-econômica-judiciária, sem qualquer horizonte de estabilização à vista. A pretensão do STF foi a de se colocar como guardião impoluto das instituições democráticas e como garantidor em última instância da Operação Lava-Jato. Com isso, pode até achar que se enfiou dentro de uma Arca de Noé que lhe permitirá aguardar, de toga, o dilúvio que virá. Mas, de fato, só fez ser arrastado pela lama de uma crise da qual até hoje tinha conseguido se distanciar com razoável sucesso.

Em um culto no templo da igreja Vitória em Cristo, em março deste ano, Eduardo Cunha justificou a imposição de sua pauta conservadora à Câmara dos Deputados em nome de posições que seriam as da maioria da população. Na ocasião, o deputado afirmou: "Não sou eu que não vou deixar a pauta progressista andar, não sou eu que sou conservador. A maioria da sociedade pensa conforme nós pensamos. É só deixar que a maioria seja exercida, e não a minoria". Aplicou o mesmo argumento à Câmara dos Deputados quando, em abril deste ano, afirmou: "Se vocês consideram conservadores e a maioria colocou a pauta e aprovou, é porque a maioria é que é conservadora". Segundo pesquisa do Datafolha divulgada ontem, 81% da população são a favor da cassação do seu mandato. Tivesse algum apreço pela coerência, o deputado acataria a posição da maioria e pediria para sair. Mas não será a primeira nem a última vez que o presidente da Câmara exibirá seu desprezo pela lógica e pelas instituições para tentar adiar sua inevitável queda.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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