segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Marcos Nobre: Por novas autópsias de Dilma I


  • A hipertaxa de juros é o nó por desatar

- Valor Econômico

A recente decisão do Banco Central de manter inalterada a taxa básica de juros revela simples impotência diante dos movimentos tectônicos da economia mundial. Pouco ou nada tem que ver com uma pretensa conspiração da sociedade dos keynesianos mortos. Foi apenas a escolha de ficar e ser comido pelo bicho. Na avaliação do BC, parece menos pior do que correr e o bicho pegar.

Depois da dominância fiscal e da dominância política, a dominância global voltou ao primeiro plano. A etapa China-petróleo da Grande Recessão traz incerteza de novo tipo. Para piorar, ao contrário da primeira etapa da crise, iniciada em 2008, o Brasil não está mais em boas condições fiscais para se defender ativamente.

Não que seja uma situação excepcional. A regra é o Brasil estar à mercê de movimentos internacionais de capital sobre os quais não tem qualquer influência. A diferença foi sempre de grau. Em 1994, o Plano Real conseguiu colocar a inflação sob controle, afastando o entrave mais aparente ao desenvolvimento do país. Mas o fez ao custo de alta vulnerabilidade externa, taxa de câmbio apreciada e taxas de juros estratosféricas. Coube ao governo Lula afastar o primeiro problema, construindo um colchão de reservas internacionais de respeito. Mas a apreciação cambial foi mantida e as taxas de juros continuaram exorbitantes. Como a nova dominância global se encarregou de desvalorizar o câmbio, a hipertaxa de juros tomou o lugar antes ocupado pela hiperinflação como último grande nó por desatar desde a redemocratização.

A devastação atual tem que ver com um breve momento de euforia em que parecia que a situação tinha mudado estruturalmente. Foi o que impulsionou o experimento tecnocrático do primeiro mandato de Dilma, que pensou ser possível reorganizar de cima a baixo o capitalismo brasileiro a partir de um gabinete no Palácio do Planalto. A começar pela taxa de juros.

A ruína da tentativa é sabida. Mas não foi ainda objeto de exame equilibrado. Para que as autópsias possam ter algum interesse para além da luta política imediata, o experimento precisa passar a ser visto daquele ângulo com que se tentou, depois do Plano Cruzado, buscar as razões do fracasso dos sucessivos planos econômicos de controle da inflação entre 1986 e 1991. (Independentemente da plausibilidade da explicação que propõe, é mérito de André Singer ter introduzido esse ângulo de análise no artigo "Cutucando onças com vara curta. O ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014)", publicado no número de julho de 2015 da revista Novos Estudos Cebrap).

Porque o projeto tecnocrático-voluntarista do primeiro mandato de Dilma foi uma espécie de Plano Cruzado da taxa de juros, com toques de Plano Collor. Como se a taxa de juros não tivesse outra razão para ser alta a não ser o fato de ser alta. O que estamos sofrendo desde o final de 2014 é análogo às tentativas de correção dos Planos Cruzado II, Bresser e Verão, de escasso sucesso, já que feitas em meio a uma tempestade inflacionária que não amainava. De resto, em relação à taxa de juros, a situação não é muito diferente daquela do século 19 tal como descrito por Thomas Piketty: o rendimento do capital supera o crescimento econômico e o que se acumula são desigualdades.

O fato de o país se encontrar em dominância global parece à primeira vista apenas introduzir instabilidade ainda maior. Mas, paradoxalmente, do ponto de vista da política interna, a nova situação tende a favorecer alguma estabilidade. Em uma situação de alta fragilidade e pouca capacidade de reação, a tendência é ficar com a estabilidade precária que se tem. Tentar trocá-la por uma promessa de estabilidade é apostar um tudo ou nada contra o colapso.

Além de a situação jogar a favor da continuidade de Dilma Rousseff, cada vez mais seu segundo mandato se parece com o governo de Itamar Franco. Até mesmo as imagens públicas de Dilma e de Itamar começam mais e mais a se assemelhar: não são vistas pessoalmente como figuras corruptas, mas simplesmente como figuras folclóricas, capazes de atitudes excêntricas ou mesmo abertamente abiloladas. Teme-se as manias e os arroubos de Dilma tanto quanto se temia a impulsividade de Itamar. E, no entanto, o fato é que tanto uma quanto o outro tiveram seu espaço de ação extremamente limitado pelas forças políticas de situação e de oposição. E, ainda que a memória coletiva apague o trauma, o governo Itamar foi uma confusão para ninguém botar defeito, ainda maior que a deste segundo mandato de Dilma. Só de ministros da Fazenda foram três nos primeiros sete meses de mandato.

Em algum momento deste ano a Lava-Jato vai mostrar quais cartas estão fora do baralho. Quem sobrar participará do rearranjo das forças políticas que vai se seguir. Deverá ser um período de total itamarização de Dilma. E, se há algum ponto positivo na analogia com o período Itamar, é o horizonte de surgimento de novas coalizões capazes de produzir soluções para a última etapa da estabilização político-econômica sob a democracia.

O Real não foi um plano técnico-econômico, simplesmente. Existiam muitas explicações para a inflação, como existem muitas para o padrão persistentemente alto das taxas de juros no Brasil. A ideia da "inflação inercial" se impôs não apenas em razão de suas inegáveis virtudes explicativas, mas, principalmente, por sua adequação e flexibilidade em vista do pacto político-social que estava sendo construído.

O conhecimento especializado tem papel decisivo a desempenhar nos próximos anos, em que as disputas tendem a se encaminhar para propostas de mudança de grandeza semelhante àquelas introduzidas a partir de 1994. Mas, para que seja efetivo, precisa abandonar a pretensão de ter à mão a solução "técnica" ideal. A formação de coalizões políticas com propostas divergentes não tem nada que ver com uma gincana tecnocrática. Como também não se confunde com demonização de experimentos fracassados. Já é mais do que hora de produzir autópsias realmente esclarecedoras do que foi o primeiro mandato de Dilma.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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