segunda-feira, 28 de março de 2016

A miragem do impeachment - Marcos Nobre

• Aumenta a chance de explosões de insatisfação

- Valor Econômico

Começou como costumam começar as revoltas: com uma passeata convocada por um movimento social organizado e com a repressão policial ao protesto. A concentração em frente à igreja matriz do bairro periférico de Santo Amaro, zona sul de São Paulo, tinha sido chamada pelo Movimento contra o desemprego e a carestia para as 8 horas da manhã do dia 4 de abril de 1983. Em pouco tempo, o protesto se transformou no que a imprensa da época chamou de quebra-quebra.

Foram 3 dias conturbados aqueles do início de abril de 1983. Na cidade de São Paulo em especial. Dias de saques a supermercados. Não apenas aqueles localizados no caminho da multidão, mas, principalmente, os instalados em zonas periféricas. As pessoas pulavam sem cerimônia as catracas de ônibus, ou simplesmente desciam sem pagar a passagem - o passe livre tinha sido decretado na marra. Estabelecimentos comerciais foram depredados.

Passeatas espontâneas e organizadas se formavam. Em uma delas, a multidão arrancou a placa de um viaduto que homenageia o General Euclides de Figueiredo. A associação com o então general-presidente João Baptista Figueiredo foi inevitável. Afinal, tratava-se de seu pai, um militar que tinha pertencido ao grupo dos "jovens turcos" que, nos anos 1920, pretendiam modernizar o Exército e o país de cima para baixo.

O sorriso atônito e o jeito humilde do anônimo que tinha em mãos o troféu da placa arrancada, carregado nos ombros da multidão, parecia, na foto, dar um caráter político organizado às manifestações. Políticas é certo que foram. Mas nem por isso controladas ou dirigidas pela política organizada.

A revolta se dirigia contra os horrores da recessão de 1981-1983, uma brutalidade que o recuo de 8,5% no PIB não consegue nem de longe tornar palpável se não se está na pele de quem perdeu o emprego e a dignidade. Nada parecido com seguro-desemprego ou Bolsa Família existiam na época, nem a Avenida Paulista era palco preferencial de manifestações. O que havia de novo era o início dos primeiros governos estaduais eleitos diretamente em mais de 20 anos. Mas, em uma das passeatas, parte das grades da sede do governo do Estado de São Paulo, o Palácio dos Bandeirantes, foi arrancada.

Pode ser que esses dias de abril de 1983 tenham tido seu papel na manutenção da decisão dos militares de passar o poder para a oposição consentida, de maneira controlada. Pode ser que tenham tido seu papel em aliviar um pouco o garrote da política econômica do último governo da ditadura, que tinha Antônio Delfim Netto no comando. Mas ficou claro que o divórcio entre a política oficial e o sofrimento social tinha atingido o limite da ruptura. Ficou claro que a eleição de governadores de Estado de oposição não teria impacto significativo no quadro geral da economia, muito menos no duro cotidiano da recessão.

É evidente que o Brasil de 1983 não é o Brasil de 2016. Mesmo que em fogo brando, é crédito de trinta anos de democracia que um golpe militar esteja fora do horizonte e que uma redinha de proteção social tenha sido armada. Acontece que a proteção social parece já ter sido esticada ao máximo. Acontece que, desde Junho de 2013, um divórcio entre a base da sociedade e o sistema político parecido com aquele de 1983 se instalou de maneira duradoura. Só que agora com a enorme diferença de que a democracia não está em questão, mas apenas o seu caráter ainda pouco democrático.

As manifestações a favor e contra o impeachment mostram esse divórcio de maneira preocupante. Os dois grupos que manifestaram na Avenida Paulista nos dias 13 e 18 de março têm taxas espantosamente semelhantes de pessoas com nível de ensino superior: 77% e 78%. A média etária supera em um caso os 45 anos, em outro está muito próxima dos 39 anos. No dia 13, 63% declararam ter renda de 5 salários mínimos ou mais. Na manifestação do dia 18, 54% fizeram a mesma declaração.

A base da sociedade parece não se emocionar com o grande Fla-Flu nacional. Só que essa relativa indiferença não significa nem de longe ausência de mobilização. Podem estar de costas para a Avenida Paulista, mas não estão de costas para seus problemas concretos. É impressionante a quantidade de novos coletivos e organizações que surgem todos os dias nas periferias das grandes cidades.

O recente movimento de ocupação de escolas públicas em São Paulo é apenas a ponta de uma meada que ainda não mostrou todo o seu potencial para a tecelagem política. Não apenas não se resume ao Estado de São Paulo como não se restringe a estudantes secundaristas. Pode-se dizer que ainda se está falando de movimentos organizados. Mas sua novidade é justamente não querer caber em formatos existentes. Mesmo um movimento considerado novo, como o Movimento Passe Livre, já não serve de modelo para esses novos coletivos.

Dá para ver aí que o divórcio é duplo. Não se trata apenas do profundo e generalizado ceticismo em relação à política oficial. Também quem está nos novos coletivos tem ojeriza fundada a partidos, sindicatos, associações, políticos, à institucionalidade de maneira geral.

O verdadeiro abismo não é o que está diante de nós, mas o que se põe entre nós. Não é o impeachment que servirá de ponte para atravessá-lo. A questão de vida ou morte não é a do afastamento ou não da presidente, mas a da capacidade de o sistema político se conectar com a base da sociedade. A política oficial, no entanto, está paralisada diante da Lava-Jato, os partidos em vias de desintegração. É o quadro em que a chance de explosões de insatisfação aumenta exponencialmente.

O problema vai muito além da constituição de um governo. Vai ser preciso muita energia teórica e prática para obrigar um sistema político em pane a se autorreformar. A primeira condição para isso é o efetivo reconhecimento de que o impeachment não é solução, mas mero adiamento do real problema por enfrentar. Mesmo que consiga se conectar com as camadas da sociedade que ainda se orientam pela institucionalidade, o caminho ainda é longo para alcançar quem acha que o impeachment não passa de miragem.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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