quinta-feira, 3 de março de 2016

O intelectual acorrentado ao Anjo Azul - Eugênio Bucci

- O Estado de S. Paulo

Vai longe, muito longe, o filme O Anjo Azul (Der Blaue Engel). Lançado em 1930, em Berlim, habita hoje os cemitérios imaginários da indústria cultural. Não deveríamos nos esquecer, contudo, que ele fez à humanidade o favor imenso de tornar famosa a atriz Marlene Dietrich. Com uma cartola na cabeça, mãos na cintura, cabelos curtinhos e um short mais curtinho ainda, ela cantava Falling in Love Again num palco de vaudeville alemão, a casa noturna chamada Anjo Azul. Seu nome era Lola Lola. Sua silhueta prateada se projetava a partir de duas coxas mais inebriantes que a boemia dos anos 20 e mais mortais que a hiperinflação de Weimar. Suas pernas resplandecentes moldaram a presença da mulher no século 20, mas não salvaram ninguém da tragédia. Viriam ainda o nazismo e a Segunda Guerra, que agora também vão longe, mas nem tanto.

A história, adaptada na Alemanha do entreguerras, é baseada no livro de Heinrich Mann, Professor Unrat (termo que quer dizer “lixo”), publicado em 1905. Tanto o romance como o filme tinham a intenção mais ou menos explícita de achincalhar a figura impoluta do educador autoritário e conservador, metido a julgar, enquadrar e reprimir a sexualidade alheia. Estamos no auge do expressionismo alemão, um cinema contestador. No papel do professor repressor, Emil Jannings é o expressionismo encorpado e espaçoso. De cavanhaque cinza claro e muitos quilos sobressalentes acolchoados sob o terno cinza escuro, empina o queixo (como um leão marinho cortejando a fêmea) e entra na casa noturna com a carranca de quem está disposto a queimar os pecadores na fogueira. 

Parece um justiceiro dos costumes. Então, em poucos minutos, o pobre homem sucumbe, indefeso, ao magnetismo erótico da cantora. É o seu fim. Ao se deixar seduzir pela estrela fácil do Anjo Azul, a mesma que encantara seus alunos mais barulhentos, o mestre de inglês e de literatura perde a autoridade, vira objeto de chacota na escola e é demitido sem dó.

Na primeira hora, ele até que tenta manter a dignidade. Cavalheiro, pede Lola em casamento. Ela diz sim. Mas, depois, o infeliz vai descambando, de show em show, numa decadência repulsiva. Termina vendendo fotos da esposa seminua para plateias alcoolizadas.

A moral da história é tão direta quanto primária: todo moralista conservador é um bobo, um reprimido ridículo. A lição de moral, logo se vê, é ela mesma um pouco moralista. O que temos então é o moralismo expressionista, supostamente revolucionário, contra o moralismo convencional, supostamente reacionário.

Tudo acabaria nisso, numa revanche esquemática de uma visão do mundo contra outra, não fosse o vigor estético do filme. Quase um século depois da estreia, a metáfora da obra prima de Josef von Sternberg ainda admite novas leituras, algumas perturbadoras e bem atuais. Falemos de duas possíveis.

A primeira pode ser entendida como uma crítica não da moral conservadora, mas da indústria do entretenimento. Sem que essa tenha sido a intenção expressa de seus criadores, O Anjo Azul disseca e antecipa a predação carnívora pela qual essa indústria viria mais tarde a devorar a alma da cultura clássica. Sem camadas de proteção contra o assédio do entretenimento emergente, os cânones da velha cultura se deixaram extasiar, embevecidos, e se converteram em serviçais coadjuvantes do grande teatro de revista em que o planeta iria se converter a partir da segunda metade do século 20.

A outra leitura possível vai encabular uns e outros, mas é ainda mais presente – e mais irrefutável, ao menos no caso brasileiro. Por essa leitura, a metáfora de O Anjo Azul expõe uma afecção do espírito típica do intelectual engajado do século 20. Por vaidade, narcisismo ou tibieza, ele sente prazer em acreditar que é desejado com sinceridade por aquela que é o objeto de desejo dos seus alunos (a juventude). Esse prazer o escraviza e ele não consegue resistir à ilusão de ser amado pela estrela que tantos amam.

Mas quem é essa estrela, exatamente? Ela não é a sereia mitológica nem uma sacerdotisa da liberação sexual, mas uma nova sereia industrializada, que entoa um canto melodramático e capcioso. Ela é a face sedutora do partido político que aprendeu a cantar na linguagem da indústria do entretenimento. Aos olhos e ouvidos do intelectual seduzido, essa estrela dá razão às veleidades teóricas que ele formulou. O intelectual imagina ouvir na canção sensual o reconhecimento de seu valor de ideólogo e se apaixona por essa sensação. Ele se sente reconhecido, suprido em sua carência, e no sorriso de Lola vislumbra o atalho para o círculo mais íntimo do poder, objeto secreto de sua cobiça inconfessável. Ele se rende, numa dança gozosa que o conduz à maldição: vai vender imagens sem qualidade enaltecendo sua amada para eleitores sem cultura, vai ser o panfleteiro traído, sempre traído, da Lola que finge amá-lo, mas na verdade o despreza.

Por fim, quando a rainha da qual se enamorou estiver seminua ou mesmo nua por inteiro nas fotografias de jornal, quando a miséria moral de sua rainha for tornada pública, exposta em contrastes mais que expressionistas para toda gente, o intelectual, traído mas ainda assim fiel, não poderá fazer mais nada que não seja esboçar uma contenteza falsa que mal esconde seu infortúnio. Ele, que um dia acreditou embarcar num novo mundo de luz, música, liberdade e deleite, movido por seu arrebatamento de adolescente deslumbrado, vai descobrir, como o professor Unrat descobriu na ressaca do Anjo Azul, que sua cátedra agora não é o partido, mas a sarjeta. Ele sabe que não valeu a pena. Sabe que se deixou enganar. Sabe que a sereia industrial mentiu. Mas não tem como ousar criticá-la, pois se exilou do próprio pensamento. Ele agora é parte ativa da impostura contra a qual, um dia, diante de uma página de livro, achou que tinha forças para lutar.
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Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP

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