sábado, 5 de março de 2016

Surge o chefão - Merval Pereira

- O Globo

A previsão de lideranças petistas de que teremos um “março sangrento”, juntamente com o discurso vazio, mas de retórica agressiva, do ex-presidente Lula assim que terminou seu depoimento na Polícia Federal, são demonstrações da irresponsabilidade com que petistas e assemelhados usam o que lhes resta de poder de convocação para tentar se manter no jogo eleitoral, mesmo às custas do sacrifício da democracia que dizem representar.

O enfrentamento nas ruas pode ser a consequência dessa irresponsabilidade, mas até o momento o poder de fogo dos insurgentes não parece ter a capacidade de neutralizar a indignação da grande maioria da população, motivada para uma ação mais objetiva em coordenação com os partidos de oposição, que voltaram a se mobilizar pelo impeachment.

Definida a legalidade da ação de ontem da Operação Lava-Jato, com a decisão da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), de negar o pedido feito pelo ex-presidente Lula para interromper as investigações contra ele, e também as ações deflagradas ontem, a retórica da perseguição adotada por Lula defronta-se necessariamente com os fatos apontados pelos procuradores do Ministério Público de Curitiba e pelo próprio juiz Sérgio Moro.

E esses fatos são negativos para Lula e os de seu entorno. Não tendo como refutar as acusações de ter se beneficiado de vantagens das empreiteiras, Lula passou a tentar desqualificá-las, como se os pedalinhos do sítio em Atibaia ou um bote de metal fossem realmente o cerne da preocupação da PF e dos procuradores.

Irritou-se quando foi perguntado sobre os pedalinhos no interrogatório da Polícia Federal, e fez graça na manifestação política no Diretório do PT, fingindo que não sabe que os valores monetários desses bens significam tanto quando um Fiat Elba para o então presidente Collor. O que eles são é a comprovação da ocultação de propriedade, assim como o Fiat foi a prova de que o presidente da República utilizava-se de um laranja para seus gastos pessoais. Não é possível tratar como uma trivialidade as diversas vantagens auferidas por Lula e seus familiares nos anos em que esteve na Presidência e nos seguintes, quando continuou a ser o político mais influente do governo e do PT, com capacidade de interferência nos negócios do Estado brasileiro.

Embora o Código de Conduta da Alta Administração Federal não se aplique aos presidente e vice-presidente da República, do ponto de vista ético, e mesmo constitucional, os responsáveis pelos poderes da União não deveriam afastar-se do determinado pelo artigo 37 da Constituição que prescreve que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”

A proibição de aceitar presentes ou favores está regulada no artigo 9º do CCAAF, que prescreve: “É vedada à autoridade pública a aceitação de presentes, salvo de autoridades estrangeiras nos casos protocolares em que houver reciprocidade. Parágrafo único. Não se consideram presentes para fins deste artigo os brindes que: I- não tenham nenhum valor comercial; ou II- distribuídos por entidades de qualquer natureza a título de cortesia, propaganda, divulgação habitual ou por ocasião de eventos especiais ou datas comemorativas não ultrapassem o valor de R$100 (cem reais)”.

Não é o caso das cozinhas Kitchens colocadas pela empreiteira OAS no tríplex do Guarujá e no sítio de Atibaia, nem as obras realizadas em ambos por diversas empreiteiras, e muito menos os próprios imóveis, cuja propriedade o Ministério Público tem indícios bastante fortes de que são na verdade do ex-presidente, que a esconde através de laranjas.

“O conjunto de indícios é bastante significativo”, disse o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, com uma cautela no uso das palavras que não o caracteriza em situações normais. A “generosidade das empreiteiras com Lula é intrigante”, ironizou Moro. O documento oficial do Ministério Público com as acusações é muito mais incisivo: “há evidências de que o ex-presidente Lula recebeu valores oriundos do esquema Petrobras”, e também são apurados pagamentos ao ex-presidente, feitos por empresas investigadas na Lava-Jato, a título de supostas doações e palestras.

O Lula que emerge das acusações do Ministério Público é aquele que, na verdade, é o chefe da organização criminosa que explorou a Petrobras e outras estatais em benefício próprio e de seu projeto de poder. O que se intuía desde 2005, quando explodiu o esquema do mensalão, agora se configura em toda sua extensão.

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