sexta-feira, 1 de abril de 2016

Petismo e antipetismo: dá para sair dessa? - Sergio Fausto*

- O Estado de S. Paulo

O Brasil está dividido. Mas não em partes iguais: o antipetismo representa hoje 70% da sociedade brasileira. No curto prazo, essa divisão é inevitável. No horizonte de médio e longo prazos, ela não interessa ao País. Ao menos do ponto de vista de quem se considera progressista, ou seja, acredita que o Brasil deve ser não apenas economicamente mais desenvolvido, mas também socialmente mais justo, politicamente mais democrático, culturalmente mais liberal e eticamente mais republicano.

Hoje, trata-se de clamar por civilidade de parte a parte. Amanhã, de restabelecer as condições de diálogo. Mas para tanto é preciso limpar o terreno de mitos construídos pela narrativa petista.

O PT surgiu proclamando-se o campeão da ética na política, da justiça social e da autonomia da sociedade ante o Estado. Tinha credenciais para isso, embora o fizesse desde o início com o dogmatismo característico do marxismo-leninismo e do cristianismo, na versão da Teologia da Libertação. Transformado em religião laica, o marxismo-leninismo, assim como o cristianismo e todas as demais crenças monoteístas, opera segundo a lógica fiéis/infiéis, conversos/hereges. Nunca o PT elaborou criticamente essa sua marca de origem, o que resultou numa inclinação de espírito essencialmente antidemocrática, jamais superada por completo.

Do mito do partido da ética não resta mais nada. Sobra ao PT o lamentável recurso de se declarar igual a todos os “pecadores”. Mas nem isso é verdade, porque a corrupção que vicejou nos governos petistas não é simples repetição de padrões anteriores. Mais organizado e centralizado que os demais partidos, ele sistematizou a corrupção em escala e extensão inéditas. A tal ponto que rompeu quase todas as frágeis membranas que protegiam ministérios, autarquias e empresas estais, com seus respectivos fundos de pensão, do apetite político-partidário por cargos e recursos. Além disso, com maior número de militantes dependentes do partido, espalhou-os por toda administração pública federal. Pior, sob a justificativa de assegurar os autênticos interesses populares, pôs em marcha uma estratégia para desequilibrar o jogo democrático a seu favor, a partir do uso e abuso dos poderes governamentais.

Ao se instalar no poder, rasgou também a bandeira da autonomia da sociedade civil ante o Estado. Passou a cooptar os movimentos sociais com transferências de recursos públicos para ONGs controladas por militantes vinculados ao partido. Isso não garantiu o alinhamento automático desses movimentos a todas as políticas dos governos petistas, mas manteve-os como “exército político de reserva” para mobilização em momentos críticos. Sobre o abandono da defesa da autonomia sindical, bandeira do novo sindicalismo nascido no ABC Paulista, berço do partido, basta lembrar um fato: em lugar de pôr fim ao imposto sindical, Lula estendeu-o às centrais sindicais, presenteando-as com dezenas de milhões anuais. Mais, vetou a obrigatoriedade de o uso desses recursos ser submetido à fiscalização do TCU.

Agarra-se o PT ainda ao título de campeão da justiça social. Segundo a narrativa petista, o partido seria o grande protagonista da “inclusão social” havida no Brasil a partir do Plano Real. Como todo relato distorcido da realidade, este contém elementos de verdade. Na oposição e no poder, o PT contribuiu para a redução da pobreza (na oposição, porque a presença de um partido de “esquerda” eleitoralmente competitivo tornava mais relevante a agenda social também para os demais partidos). No entanto, tão importante quanto o que esse relato diz é o que ele não diz.

A narrativa petista omite que o PT votou contra a aprovação da Constituição de 1988, que expandiu os direitos sociais; se opôs ao Plano Real, ponto final posto na superinflação, que castigava sobretudo os mais pobres; não apoiou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério, ao qual se deve a presença na escola de quase todas as crianças de 7 a 14 anos; além de chamar a Bolsa Escola de “bolsa esmola” quando ela foi introduzida no nível federal pelo governo Fernando Henrique, para não falar no bloqueio corporativo, por meio de sindicatos, de reformas importantes para a melhoria da educação básica. A narrativa petista omite também que o ressurgimento do “nacional-estatismo” no segundo mandato de Lula e sua multiplicação enlouquecida no governo Dilma estão destruindo a árvore das conquistas sociais que o País levou tantos anos para erguer e que tiveram no governo do ex-presidente sua florada mais exuberante.

A civilidade do debate é inseparável da honestidade intelectual. Essa, provavelmente, a matéria em que os 14 anos de lulopetismo deixarão seu pior legado. Nunca antes na História deste país, sob regime democrático, tantos repetiram com tanta intensidade e frequência ideias prontas e slogans feitos para distorcer os fatos em benefício de um grupo político e estigmatizar seus oponentes. Esse veneno penetrou a sociedade e provocou reação, agora virulenta.

Compartilho a preocupação com o aparecimento de uma direita retrógrada e autoritária, mas o lulopetismo, com as mãos na consciência, deveria questionar-se sobre a parte que lhe cabe nesse fenômeno que hoje denuncia e deliberadamente inflaciona para, mais uma vez, estigmatizar seus oponentes e justificar a permanência do partido no poder.

O governo Dilma, que a rigor jamais existiu neste segundo mandato, está fadado a encerrar-se precocemente. Será difícil e complexo restabelecer o caminho do desenvolvimento que, mal ou bem, o País vinha trilhando até meados da década passada. Há muito trabalho a ser feito no plano das instituições, por meio de reformas. Não menos importante é o trabalho a fazer na sociedade para recuperar a razoabilidade do debate político.

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*Sergio Fausto é superintendente executivo do iFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, e membro do Gacint-USP

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