segunda-feira, 9 de maio de 2016

De pontos e de curvas- Marcos Nobre

• Não apareceu alternativa à transição tutelada pelo STF

- Valor Econômico

Na sabatina no Senado a que foi submetido como um dos requisitos para se tornar ministro do STF, em junho de 2013, Luís Roberto Barroso afirmou que o mensalão representou "um ponto fora da curva". No raciocínio de Barroso, a curva representa o funcionamento do direito em condições normais. Cada sentença judicial - cada "ponto" - encontra o seu lugar perto de certo acordo de base - a "curva" -, que representa uma espécie de "sentença ideal" a reunir casos semelhantes.

Um ponto fora da curva não faz verão jurídico. Não incomoda enquanto não tiver companhia. Ou enquanto ninguém se importar com seu acúmulo, por expressivo que seja. Para o direito, tempos anormais são aqueles em que as curvas parecem desaparecer, em que os pontos parecem se espalhar todos de maneira aberrante. O passado deixa de servir de parâmetro para o presente e não se vê com clareza qual nova interpretação do dispositivo legal pode fazer com que os pontos todos voltem a se distribuir de maneira normal, voltem a compor a curva suave com que sonha o direito.

Não foram poucos os pontos fora da curva nesses últimos três anos. Mas o ponto mais afastado da série até o momento foi mesmo a decisão de suspender o mandato do deputado Eduardo Cunha, voto do ministro Teori Zavascki acompanhado pelo conjunto dos ministros do STF. A anormalidade dos tempos não se limita a pedir que o direito tome decisões invariavelmente fora da curva para dar conta de mudanças rápidas e profundas na sociedade, na política e na economia. Exige também que o Judiciário, o STF em especial, faça nada menos do que criar o quadro de estabilidade em que o jogo político pode se dar.

Não faz sentido dizer que apenas o Legislativo pode legislar. O Executivo também legisla. E qualquer sentença judicial é legisladora, representa criação de norma. Mas o que está em causa no momento vai além disso. A anormalidade dos tempos está pressionando o STF a exercer um papel semelhante ao de um poder constituinte.

Até a decisão de suspender o mandato de Cunha, o STF tinha optado pelo máximo de autocontenção possível. Não faltam indícios de que houve uma concertação entre os ministros para influir o menos possível no desenrolar da crise política, apesar da gritaria geral por soluções definitivas. A partir de agora, o STF terá de resolver se vai novamente recuar para a posição anterior ou se acabará respondendo aos clamores por um Judiciário bonapartista.

O momento atual não é apenas o do impeachment de Dilma Rousseff e do início de um governo Temer. Coincide também com o encerramento da fase curitibana da Lava-Jato e com o pleno desenvolvimento de sua fase brasiliense. Quem não tem privilégio de foro, recorrerá à segunda instância da Justiça Federal. Quem faz parte da política oficial está já nas mãos do STF. Mais especificamente, de Teori Zavascki.

Executivo e Legislativo têm tantos investigados que não têm condições de executar as tarefas que lhes cabem na estabilidade política. O Judiciário passou a ocupar exclusivamente o lugar de estabilizador institucional. Ocorre com isso que a política que não consegue ser feita pelo Executivo e pelo Legislativo passa a invadir o STF. É fato que o STF faz parte do sistema político. Mas ele não é diretamente político, é obrigado antes de tudo a se submeter à lógica do direito, à lógica dos pontos e das curvas, para, por meio do direito, exercer de maneira plena seu papel político no sistema.

Ao suspender o mandato de Cunha, o STF agiu de maneira diretamente política. Repetiu, aliás, o que já tinha feito o juiz Sérgio Moro ao determinar a condução coercitiva de Lula para depor e ao divulgar todos os áudios de conversas do ex-presidente. Sérgio Moro foi devidamente repreendido por Teori Zavascki por sua atitude. Ocorre que a instância institucional que poderia repreender e controlar o STF, o Legislativo, está em frangalhos e sem condições de ação ou de reação.

Por trás do conto da carochinha da briga de egos entre ministros, o que realmente esteve em causa na decisão Cunha foi uma disputa pela posição vencedora na condução do país durante sua crise político-econômica. Como relator da Lava-Jato no STF, Teori Zavascki colocou-se na posição de esteio da estabilidade política. Suas decisões, ações e atitudes indicam a intenção de garantir as condições para que o governo Temer possa se instalar e governar. Isso significa, antes de mais nada, garantir que o andamento da Lava-Jato no campo da política oficial seja mantido em um ritmo que não inviabilize o governo Temer. Como significa também exercer sua posição hierarquicamente superior ao grupo de Curitiba. Ocorre que isso tudo implica também que os demais ministros do STF se perfilem atrás dessa posição de autoridade e de poder do relator da Lava-Jato.

A decisão Cunha significou um desafio a essa pretensão de Teori Zavascki por parte de Marco Aurélio Mello e de Ricardo Lewandowski. A atitude concertada do presidente do tribunal e de seu mais notório franco atirador mostra que, no mínimo, estão a exigir que sejam ouvidos em uma necessária abertura de negociação em torno da questão. A resposta de Teori Zavascki ao enfrentamento não foi exatamente nesse sentido. Sua decisão no caso Cunha foi o equivalente STF do pito que passou em Sérgio Moro.

Para além de pontos e curvas, o que está em questão é a travessia até 2018. Não surgiu até o momento qualquer alternativa real a uma transição tutelada pelo STF. A disputa é apenas sobre a natureza dessa tutela. Um STF fraturado vai produzir uma saída tão ineficaz quanto aquela que já não é oferecida por um sistema político em pane. E está longe de ser evidente a produção de uma maioria sólida e constante em uma corte que se mostra refratária a composições duradouras.

A unanimidade no caso da decisão sobre o mandato de Cunha foi apenas aparente. Para que seja efetiva, a maioria dos ministros precisa chegar a um acordo de base inédito e duradouro. Se isso não acontecer, todos os anos até 2018 vão repetir 2015. E pontos e curvas se tornam simplesmente irrelevantes.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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