segunda-feira, 9 de maio de 2016

Pós-impeachment, os dois tempos da política - Sergio Fausto

- O Estado de S. Paulo

A gravidade do quadro econômico herdado do governo Dilma Rousseff é tal que qualquer brasileiro(a) de bom senso deve torcer para o sucesso do governo de Michel Temer. Sem reformas que logo permitam restabelecer o controle sobre o gasto público e o caminho do crescimento, será cada vez maior o temor sobre a capacidade do Estado brasileiro de honrar sua dívida e crescente o risco de o governo a ser eleito em outubro de 2018 assumir o poder confrontado com uma situação de iminente insolvência fiscal. Trata-se de evitar esse cenário, que condenaria o País a mais de uma década perdida.

Da mesma maneira, o desarranjo do quadro político é tal que arrumá-lo é do interesse de todos os partidos comprometidos com critérios razoáveis de organização e exercício do poder numa democracia. Daí a necessidade de introduzir reformas que, no mínimo, livrem o atual sistema político-eleitoral dos seus piores males, a começar pela fragmentação excessiva. O governo Temer talvez não tenha condições de avançar muito nessa agenda, já que ela tende a dividir a maioria parlamentar que o novo governo busca construir. Reformas políticas maiores terão provavelmente de esperar o próximo período presidencial, sob pena de inviabilizar as reformas fiscais inadiáveis no governo de transição que se avizinha. Mas alguns passos serão indispensáveis para indicar a mudança do sistema político.

Se a saída da crise exige unidade em torno do que é urgente, o amadurecimento da democracia brasileira requer, num horizonte de médio prazo, que as forças políticas se recomponham, marcando diferenças entre si de acordo com orientações programáticas que deem mais nitidez e inteligibilidade ao quadro partidário brasileiro.

Com a crise que ameaça a existência do PT e com as indefinições crescentes do PSDB, a política brasileira perdeu o que de mais sólido foi construído em termos de identidade programática dos partidos desde o retorno do País à democracia. Por algum tempo esses dois partidos, mal ou bem, organizaram duas visões concorrentes no campo da centro-esquerda. A primeira naufragou abraçada com práticas alastradas de corrupção e com um anacrônico e desastroso nacional-estatismo; a segunda perdeu os contornos que a definiam com mais nitidez. A aglutinação de forças de centro-esquerda em torno de uma agenda progressista atualizada terá de acontecer, se acontecer, para além das linhas divisórias que definem o quadro partidário atual.

Nesse sentido, é preciso ter ao menos clareza com relação às marcas distintivas essenciais dessa agenda. Nela as questões clássicas das políticas econômicas e sociais continuarão a ser centrais: como fazer o PIB crescer, combater a pobreza e reduzir a desigualdade.

Uma nova identidade progressista que vier a se formar terá de se diferenciar, de um lado, pela condenação do repertório de políticas populistas, protecionistas e dirigistas que nos levaram à crise atual e, de outro, pela defesa de uma reforma fiscal e tributária, processo que não se esgotará no governo Temer, que não apenas aumente a eficiência da economia e assegure o equilíbrio de longo prazo das contas públicas, mas também torne o sistema tributário e o gasto público socialmente mais justos.

Não menos importante é que uma nova identidade progressista se comprometa com uma visão contemporânea sobre as relações entre economia, sociedade e meio ambiente, fazendo avançar internamente a agenda de compromissos assumidos pelo Brasil no acordo alcançado entre os países signatários da Convenção do Clima em dezembro, em Paris, e formalizados no final de abril em reunião das Nações Unidas. O cumprimento desses compromissos atende aos melhores interesses do Brasil e são antes uma oportunidade do que um obstáculo ao desenvolvimento do País.

Ainda no campo das relações entre políticas domésticas e internacionais, uma nova identidade progressista deve aliar o realismo indispensável a qualquer política externa eficaz e o princípio da não intervenção, de um lado, à condenação firme de violações a direitos humanos e à democracia no mundo, em particular na América Latina, de outro. A altivez da política externa brasileira não pode ser confundida com o antiamericanismo primário e com a complacência (pragmática ou ideológica) com governos que desrespeitem sistematicamente aqueles valores.

Falando em valores, o progressismo no Brasil vê-se hoje diante de uma ofensiva conservadora que, em nome de uma interpretação dogmática de supostos mandamentos bíblicos, ameaça direitos individuais legalmente assegurados e estimula direta ou indiretamente um clima de intolerância contra homossexuais, transgêneros, praticantes de religiões africanas e outras escolhas identitárias e comportamentos tidos como “desviantes”. Nesse campo não há espaço para ambiguidades, visto não existir meia defesa de direitos individuais. Cabe apenas ter cautela para não embarcar na criminalização de opiniões que possam ser ou parecer ser preconceituosas, para não limitar a liberdade de expressão.

Por fim, mas não menos importante, o progressismo deve estar aberto a inovações nas práticas democráticas que tornem viáveis novas formas de participação na vida política do País. O objetivo deve ser sempre aprimorar a democracia representativa, e não substituí-la por formas supostamente mais autênticas de participação popular. Trata-se antes de aumentar a incidência dos cidadãos nas deliberações legislativas que de multiplicar conselhos de “representantes da sociedade civil” ou plebiscitos eletrônicos.

É cedo para dizer se uma nova identidade progressista no Brasil ganhará nenhuma, uma ou mais de uma expressão partidária. Mas já é hora de fortalecer os espaços de diálogo e convergência entre as lideranças políticas e da sociedade civil que se identificam com essa perspectiva.

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Superintendente executivo do iFHC, Colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP.

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