domingo, 22 de maio de 2016

Proposta de reforma da legislação divide os especialistas

• Para alguns, menos leis aumentariam segurança ao contratar. Outros veem precarização das relações

Daiane Costa - O Globo

A discussão sobre uma reforma trabalhista no momento em que o Brasil atinge taxas históricas de desemprego, que já afeta mais de 11 milhões de pessoas, traz à tona um debate acirrado entre economistas, sociólogos e juristas. Setenta e três anos depois da criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), não há consenso entre especialistas se menos regulação ou uma flexibilização de normas daria impulso ao emprego formal sem perdas na qualidade das condições de trabalho. A quantidade de regras — são mais de 1.700, entre leis, portarias, normas e súmulas trabalhistas — também é alvo de críticas e defesas.

Para o especialista em economia do trabalho José Marcio Camargo, da PUC-Rio, a legislação brasileira protege excessivamente o trabalhador, engessa a relação entre patrões e empregados e onera as empresas. Ele sugere uma reforma que combata a rotatividade que, segundo ele, é incentivada pela garantia de liberação de FGTS e multa rescisória quando o trabalhador é dispensado sem justa causa:



— A legislação atual estimula a rotatividade porque incentiva que o funcionário queira ser demitido, pois ganha um prêmio ao sair da empresa, entre quatro e cinco salários a mais, em FGTS, multa rescisória. Ao mesmo tempo, desincentiva a investir em qualificação, pois a empresa corre o risco de perder esse investimento.

Ancorado na experiência internacional, Camargo defende que as negociações coletiva e individual prevaleçam sobre as leis existentes e que a maior proteção para o trabalhador é o seu nível de formação:

— Países com mercados de trabalho mais livres têm índices de desemprego menores, como na Alemanha (que está na casa dos 4%), enquanto na Espanha e França, que têm mais regras, este é muito maior, de 20% e 10% (respectivamente). O que protege o empregado é a sua qualificação. Se não for produtivo o suficiente, ou o for menos do que seu salário, é demitido. Ninguém contrata para ter prejuízo.

O sociólogo e especialista em Relações de Trabalho José Pastore, e o advogado trabalhista e professor da FGV Direito Rio Luiz Guilherme Migliora também defendem uma reforma que reduza os custos das empresas, para que estas possam gerar e manter mais empregos.

— Com um bom respaldo parlamentar, o governo (Michel Temer) poderá atuar junto ao Congresso para regulamentar medidas que possam induzir a geração de grande número de empregos, como regras para a contratação do trabalho intermitente e de jornadas reduzidas, redução dos custos de contratação de jovens recém-formados, permissão para contratar grupos que sofrem discriminação e resistência, como os portadores de deficiência, por dois ou três dias por semana — pontua Pastore.

Tanto o sociólogo quanto Migliora entendem que profissionais de alta renda e bom nível educacional devem ter liberdade para acertar as condições de trabalho diretamente com o empregador.

— Quem ganha menos e tem menos qualificação (chão de fábrica, comerciários, agricultores e domésticos) deve continuar 100% protegido pela CLT. Os trabalhadores de nível intermediário (formação acadêmica e salários médios) poderiam passar por flexibilizações, podendo fracionar as férias em mais de duas partes, deixar de recolher FGTS, que é mal remunerado e só serve para financiar o governo, para que decidam onde aplicar essa fatia do salário, e substituir as horas extras por banco de horas. Num terceiro nível, executivos com salários acima de R$ 30 mil deveriam ter liberdade total de negociar o contrato com a empresa — sugere Migliora, ressaltando que a maioria dos conflitos que hoje entopem a Justiça do Trabalho e oneram as empresas é para cobrar horas extras que as firmas deixam de pagar.

Para a cientista política Ângela de Castro Gomes, especialista em história da legislação trabalhista no Brasil, o discurso sobre uma reforma que aumente a produtividade e gere empregos pode ser apropriado num momento de recessão, mas é preciso avaliar em quais condições essas vagas serão ofertadas:

— Esse discurso de que a legislação é um obstáculo à criação de emprego, num momento em que falta trabalho, pode ser vista, grosso modo, como atraente. Eventualmente pode gerar mais vagas. Mas em que condições? É bom para quem? Sou contra o interesse em aumento de produtividade e emprego a qualquer custo. É uma bobagem pensar que proteção aos trabalhadores impede o crescimento da economia. Eu não quero que o Brasil seja uma China, com produtos muito baratos e trabalhadores em péssimas condições de trabalho.

‘Inversão do sistema jurídico brasileiro’
Ângela, o professor do Instituto de Economia da Unicamp Claudio Dedecca e Sayonara Grillo, uma das coordenadoras do Grupo de Pesquisa Configurações Institucionais e Relações de Trabalho da Faculdade de Direito da UFRJ, argumentam que a proposta de permitir que convenções prevaleçam sobre a legislação é inconstitucional, pois coloca em risco direitos trabalhistas assegurados pela Constituição, em seu artigo 7º, e que não são negociáveis. Defendem, ainda, que essa proposta é totalmente inadequada num momento em que o desemprego tirou o poder de negociação dos trabalhadores. Sayonara lembra, ainda, que uma proposta semelhante, o projeto de lei (PL) 5483/2001, foi arquivada em 2003 pelo então presidente Lula.

Pastore é simpático à ideia de Temer, mas entende que as convenções devem valer tanto quanto a legislação, não se sobreporem a ela. Dessa forma, explica, as partes teriam a possibilidade de negociar o que consideram melhor para ambas. Quem não quiser negociar fica com as proteções estampadas nas leis.

— Digamos que empregados e empregadores queiram reduzir o horário do almoço de 60 para 30 minutos e fazem isso para os empregados saírem mais cedo do serviço, e empregadores gastarem menos insumos. Os dois ganharam. Infelizmente, a lei e a Justiça do Trabalho não permitem que as partes exerçam essa liberdade. Os empregadores terão mais coragem para empregar se as regras forem ajustadas aos seus negócios — exemplifica o sociólogo.

Sayonara e Ângela entendem que uma reforma trabalhista deve ser feita sempre com a intenção de aumentar a proteção do trabalhador:

— Essa proposta cria uma absoluta inversão no sistema jurídico brasileiro e vem na contramão da tendência de universalização do direito do trabalho e da garantia do trabalho decente, que é preconizado pela OIT — ressalta Sayonara.

Dedecca critica o fato de a reforma ser, ao seu ver, “autoritária”, sem discussão com patrões e empregados. Ele acredita na necessidade de sindicatos fortes e uma mudança na forma como ocorrem as negociações entre patrões e empregados, para que as propostas de alteração da CLT partam dessas convenções, a serem encaminhadas ao Congresso para aprovação:

— Precisamos fortalecer a negociação coletiva para que ela seja transformada num sistema de diálogo no qual as partes são obrigadas a negociar e não podem romper a negociação porque isso demonstraria má-fé, como na Alemanha.

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