segunda-feira, 27 de junho de 2016

A burrice da inteligência - Marcos Nobre

• A intolerância inteligente levará a novos Brexits

- Valor Econômico

Dez anos atrás, em 2006, deveria ter acontecido no Reino Unido um referendo sobre a proposta de uma Constituição Europeia. Mas, depois da vitória do "não" em referendos na França e na Holanda, em 2005, o então primeiro-ministro Tony Blair adiou indefinidamente a consulta ao eleitorado britânico. Para evitar novas derrotas, a elite política europeia deu uma carteirada tecnocrática. Aprovou, em 2007, o Tratado de Lisboa, que veio a se tornar a base constitucional da União Europeia.

A carteirada foi ameaçada pela rejeição do Tratado em referendo na Irlanda, em 2008, resultado revertido no ano seguinte com a realização de nova consulta sobre o mesmo tema naquele país. Os demais países membros aprovaram o Tratado no âmbito de seus parlamentos, sem recurso a referendos. Assim foi no Reino Unido, que aprovou o texto em 2008. O Tratado entrou em vigor em 2009. Não por acaso, nesse mesmo ano Nigel Farage assumiu a direção do Partido pela Independência do Reino Unido (UKIP), que se tornou a partir daí uma das principais forças políticas a liderar o Brexit.


Como na França em 2005, também agora a posição perdedora no Reino Unido quer refazer o referendo. A inteligência europeia pensa que democracia é o exercício de dar às pessoas a oportunidade de concordar com a inteligência europeia. O campo contrário ao Brexit formou um arco que ia da alta finança ao cinema de protesto. A direita e a esquerda bem informadas se uniram. E, ao formarem essa aliança de amplo espectro, jamais imaginaram que a votação pudesse de fato ir contra toda a inteligência assim reunida. A arrogância do partido da inteligência se estendeu sem cerimônia por todo o planeta, espalhando o discurso sem contraponto de que o Brexit era resposta passional, loucura de uma massa ignara e retrógrada.

Dá até para entender que essa inteligência pense que a votação deva ser repetida até que o eleitorado vote como deve votar e não como acha que pode votar. Insistir em que o eleitorado britânico errou desobriga de reconhecer a própria incapacidade de entender o que aconteceu. É uma saída fácil para manter a inteligência em sua arrogância, reduzindo o resultado à vitória da xenofobia, do nacionalismo, do ressentimento contra a modernidade e contra a globalização e de mais todo o rol de atributos sinistros que se puder encontrar na cartilha política atual.

Para se manter inteligente, a inteligência precisa qualificar de burra a maioria do eleitorado favorável ao Brexit. Na versão caridosa, diz que todas essas pessoas não sabem o que fizeram, que foram manipuladas para agir de maneira assim tão idiota e estúpida. Na versão econômica do argumento, não são poucos os que atribuem a vitória do Brexit aos efeitos deletérios da crise econômica mundial de 2007-2008. Já se vê aí que não enxergam qualquer ligação entre os resultados dos referendos de 2005 na França e na Holanda e o da semana passada, que não entenderam nada do que aconteceu nos últimos dez anos. Com a aprendizagem bloqueada, a inteligência insiste em prescrever a si mesma como remédio, como se novas doses de sua lógica tecnocrática pudessem alterar o resultado das votações em que foi derrotada exatamente por ser tão tecnocrática quanto a construção da União Europeia até agora.

Quanto mais a inteligência estigmatizou e hostilizou quem estava simplesmente em dúvida, como se dúvida não coubesse, tanto mais essas pessoas se sentiram confirmadas no tratamento democrático de segunda classe que é o seu dia-a-dia. São tratadas como o baixo clero da democracia, como se seu único papel fosse o de dizer amém à autoproclamada inteligência. Ao menor sinal de hesitação, de real necessidade de convencimento para tomar uma posição, a pessoa em dúvida ou pouco convicta é imediatamente congelada, empacotada e etiquetada como essencialmente conservadora ou mesmo reacionária, um caso irrecuperável a ser combatido como um inimigo em uma guerra.

Não bastasse isso, ao menor sinal de dúvida ou hesitação, não falta mesmo quem saque a palavra "fascista" do cinto de inutilidades das redes sociais. Não é apenas uma ofensa às reais vítimas do real fascismo do século 20, é também uma banalização daquela que é a mais grave das qualificações políticas. Pior ainda, é justamente esse tipo de arrogância que pode de fato levar a regressões fascistas. Não levar a sério o que as pessoas dizem porque não cabe no esquema da inteligência reduz o campo de escolha ao fascismo autêntico, que não se pretende inteligente nem arrogante.

Foi o círculo vicioso da inteligência que transformou a votação do Brexit em uma alternativa entre a racionalidade e a desrazão e, no limite, entre democracia e fascismo. Só que, com isso, igualou racionalidade e democracia ao que hoje responde por esses nomes, uma racionalidade que ignora o real sofrimento das pessoas e uma democracia que não pouca gente considera pouco democrática. E essa atitude burra da inteligência não vale apenas para o Reino Unido. Vale para os EUA, para o Brasil e para todo o lugar do planeta em que a revolução digital tenha trazido seu rastro de precarização e de novas desigualdades e divisões sociais. A intolerância inteligente é caminho seguro para novos Brexits.

Mas também não se trata simplesmente de constatar o quanto a inteligência é burra. É muito mais grave do que isso. A inteligência que se arroga a posição de representante e intérprete privilegiada da democracia se mostra, no final das contas, muito pouco democrática. Esse é apenas um sinal de sua incapacidade de lidar com uma democracia que se espalhou pelo planeta e que, em graus muito variados, se firmou nas diferentes sociedades como forma de vida.

Uma radical mudança de posição por parte da inteligência exige que ela se democratize, que deixe a posição estranhamente confortável de ter sempre razão e cada vez menos votos e base social. A discussão em torno do resultado favorável ao Brexit mostra que ela pouco aprendeu nos últimos dez anos. A questão é saber se, desta vez, algo vai mudar, ou se 2026 vai repetir 2006 e 2016.

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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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