domingo, 19 de junho de 2016

A hora do lobo solitário - Fernando Gabeira

- O Globo

Domingo passado foi um dia terrível em todo o mundo. Choro, morte, luto, desespero na boate Pulse, em Orlando, na Flórida. Os debates televisivos só falavam nisso, na trágica morte de 49 pessoas, nos feridos levados às pressas para o hospital. Três temas emergiram nas primeiras horas do atentado: controle de armas, homofobia e extremismo religioso. Pareciam entrelaçados, estimulavam novas sugestões sobre políticas públicas.

Olhava tudo aquilo com um pouco de ceticismo. Não subestimo essas políticas. Era, realmente, o que podia ser discutido nas primeiras horas. No entanto, como se tratava de um ato de um lobo solitário, sabia que faltava uma dimensão ao debate e ela só seria incorporada com o tempo: a personalidade do assassino.

É cada vez mais necessário discutir também o perfil dos lobos solitários que se dedicam ao terror. Indivíduos são singularidades únicas, sei como é difícil encontrar semelhanças entre seus atos isolados, estabelecer algum padrão no seu comportamento.

A Pulse é uma boate frequentada por gays. Era indiscutível o traço homofóbico na personalidade de Omar Marteen. A experiência sobre assassinatos de gays no Brasil indica que parte deles é executada por parceiros ocasionais.

Em muitos desses assassinatos, o matador usa facas e tesouras e aplica na vítima centenas de golpes. Sempre coloquei essa questão ao abordar o tema: se apenas algumas facadas bastam para matar, por que desferir centenas delas? Quem o criminoso estava matando depois de ver que o outro estava morto? Mesmo sob o risco de ser chamado de leviano, respondi a essa questão com naturalidade: era preciso matar, além da vítima, a própria homossexualidade. Em outras palavras, certo tipo de homossexual reprimido é, potencialmente, uma grande ameaça àqueles que vivem de peito aberto sua orientação sexual.


As horas foram se passando, e o pai de Omar declarou que o filho se revoltou ao ver dois homens se beijando em Miami. Uma ex-mulher declarou que Omar a espancava com regularidade. Finalmente, no meio da semana, soubemos que o assassino frequentou a boate gay não apenas como um observador, mas integrado na atmosfera. Omar, ao que tudo indica, era gay.

As declarações do pai revelam que a educação na família afegã condenava a homossexualidade. O pai admite que os gays devam ser punidos, mas apenas por Deus. O mergulho na personalidade dos assassinos não significa que políticas públicas sejam inúteis. Mas, certamente, pode torná-las mais eficazes.

Nesse caso específico, a educação para a tolerância talvez resultasse em algo melhor. No entanto, é uma questão delicada. Grande parte das famílias considera que deva ter o monopólio da educação sexual dos filhos.

O que fazer? O governo da esquerda lançou cartilhas, mas encontrou uma grande resistência. A resistência não é apenas nacional. O debate sobre uso de banheiros por transgêneros nas escolas americanas também foi intenso. A única saída seria transformar a educação sexual em facultativa nas escolas públicas, semelhante à educação religiosa.

Sei que é uma proposta conciliadora, que suscita a rejeição dos dois lados. Mas há duas maneiras de se avançar nesse campo. Uma delas é através da negociação, de um jogo em que todos ganham. A outra é através do conflito, do debate emocionado. O segundo caminho é o que tem sido experimentado no Brasil, sobretudo a partir dos bate-bocas parlamentares. A sensação que tenho é que o debate só serviu para exacerbar o conflito. Decisão real mesmo só quem tomou foi o STF.

Alguns lobos solitários são produto da repressão interiorizada. Liberá-los dessa força sinistra contribui para reduzir os assassinatos. Finalmente, o debate sobre controle de armas merece um olhar mais brasileiro. Nos EUA, com todo o liberalismo, mata-se menos, proporcionalmente, do que no Brasil. Não adianta proibir quando não existem mecanismos de controle. O proibido acaba reaparecendo no comércio clandestino.

Numa viagem que fiz à Colômbia, constatei, em Medellín, que a polícia na terra de Pablo Escobar fazia constantes batidas para apreender armas ilegais. Às vezes, parava um ônibus e revistava todo mundo. O problema das constantes revistas é o incômodo que trazem aos passageiros e transeuntes. Seria necessário gastar tanta energia para explicar quanto para revistar. Mesmo com os modernos detectores portáteis. Buscar saídas depois de algo trágico é um esforço humano para controlar o imprevisível. Todos sabemos que é difícil evitar que um maluco saia matando gente.

Na véspera da I Guerra Mundial, terroristas adiaram o atentado em Sarajevo porque havia crianças na carruagem do arquiduque. Hoje explodem tudo que há pela frente: crianças, velhos, explodem até a si próprios. Omar não nos engana. E certamente não enganará Alá e as 70 virgens que o estariam esperando no céu.

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