domingo, 19 de junho de 2016

A vida não é filme – nem a política - Carlos Melo

• Eduardo Cunha foi protagonista do processo, ao seu modo: sem comedimento, sem conciliação. Sentado sobre o paiol de pólvora,ameaçou explodi-lo e de fato o explodiu. Ele não é de blefes; que ninguém se engane.

- O Estado de S. Paulo / Aliás

House of Cards é uma série televisiva conhecida por todos que ainda se interessam por política, curiosos de seus bastidores e de seu mundo obscuro. Frank Underwood, interpretado por Kevin Space, é o deputado que faz o diabo para chegar ao topo do poder e da carreira que projeta para si, a presidência dos Estados Unidos. Na última temporada exibida, Underwood se envolve em tantas maçadas que parece próximo do fim. Mas é possível que ache por onde se safar. Conseguirá ou não, a 5ª temporada, em 2017, é que dirá.

Diante da realidade brasileira, a série da Netflix parece, no entanto, um modelo simplificado. A cena nacional tem mostrado casos mais escabrosos e complexos em quantidade de atores, interesses, conchavos e conflitos. Quem acompanha o noticiário já leu, viu e ouviu de tudo; coisa de fazer vaca tossir. A inventividade do cinema é incapaz de superar a criatividade do cotidiano nacional. No caso do Brasil, é a arte que tenta imitar a vida, não o contrário.

A realidade destes tempos é menos simples, mais crua e vertiginosa: no redemoinho de tantos escândalos, sabe-se de lambanças de toda ordem: compra de votos, propinas, orgias, paixões, delações, cassações, prisões, dois impeachments… Nada surpreende; não fosse tão absurdo, o thriller político nacional daria um Oscar.


Mas, na vida real, o maior problema do filme e dos escândalos é sua naturalização; a crença de que política é isso aí e nada pode ser feito. Embora comece a se desfazer, isto aconteceu no Brasil. E assim, pelo ímpeto, ousadia, poder que ostentou e até pelo porte e elegância de sua esposa – tal a Claire da série –, Eduardo Cunha foi o exemplo assimilado e aclamado como o Frank Underwood brasileiro. Jornais reproduziram isto e a comparação se tornou um clichê.

O genérico nacional encarnou o que se imaginou ser a política real: o sucesso conquistado por meio de regras tácitas do submundo da própria política; o poder bruto e temerário, sem limites; o domínio de instrumentos de poder: cargos, verbas, emendas; capacidade de pressão e chantagem. Durante certo período, Eduardo Cunha expressou o anti-herói útil que, justiceiro acima da Justiça, enquadraria a soberba da presidente, a arrogância de seus ministros e a glutonaria da nomenclatura petista.

Foi elevado à condição de príncipe, como se a soma de seus defeitos se transformasse em virtudes. Presidente da Câmara, foi compreendido, assim, como um PhD da política, mestre de suas manhas e macetes; condutor que comandaria as bases governistas ao rompimento com o próprio governo e, por fim, ao impedimento da desastrada presidente da República, em nome de um novo governo capaz de dar um reloading no sistema. Uma Bolívar, ao seu modo: libertador do fisiologismo e do ressentimento nacionais.

Recuperem imagens recentes e se verá um séquito, que hoje o renega; chefes e chefetes da ex-oposição a acompanhá-lo como quem se destina ao futuro, num ajuste de contas. E não somente em votações que implodiram Joaquim Levy, o governo do PT e a coerência dos tucanos, mas também pelos corredores, salas e escaninhos da Câmara, nas confabulações da residência oficial, onde se tramavam agendas de “fim do mundo” e a defesa do status quo. O mudar tudo para não mudar nada; mal necessário – talvez, nem tão mal, necessariamente.

Mesmo o PT, os embates que com ele travou parecem ser menos por reprovação aos princípios do que pela disputa de nacos de poder, cargos e verbas – além de restrições à sua estética baixo clero, evangélica e conservadora. Durante um tempo, até conviveram bem, confraternizando de eleição em eleição. Impossível que não soubessem dos negócios do aliado; não percebessem métodos que o levariam, impassivelmente, à presidência da Câmara. Líder do PMDB, no primeiro mandato de Dilma, Cunha foi dos mais relevantes operadores da base governista. Não era um corpo estranho.

Oriundo do Collorato, sabia-se de sua natureza: ainda no governo Lula, relatou o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) da prorrogação da CPMF; exibiu credenciais que, com o tempo, tornariam nítido o estilo. Para encaminhar o processo de interesse do governo, exigiu compensações: nomeações de aliados; criou empecilhos que a CPMF, por fim aprovada na Câmara, não teve tempo de tramitar e ser validada pelo Senado. A perda do governo rondou os RS 40 bi, à época. Na queda de braço, percebeu-se ali alguém muito maior que um anão.

Cunha jogava – e, sem ilusões, ainda joga – duro, com tudo o que dispõe e sabe. É exímio negociador de Leis e Medidas Provisórias; retira dali, insere daqui o que é do interesse seu, de suas bases, de seus amigos – espécie de clientes. Fez assim o patrimônio – o político, pelo menos. Sob as barbas e bigodes de seus ministros e conselheiros, o governo do PT deixou que crescesse, se transformasse em líder e peça-chave do estratégico, perigoso e inconstante PMDB. Por soberba, indolência e imprudência, não lhe deram importância. Pagaram o preço.

Mas por que, afinal, Eduardo Cunha contou com a condescendência do próprio PT e de seu governo; com a admiração de tucanos e a adesão do que tem sido chamado “Novo Centrão” – que, aliás, ele mesmo constituiu? Apenas interesses circunstanciais não são capazes de explicar o edifício; algo mais estrutural escorou a construção precária.

A argamassa que sedimenta esse tipo de relação é antiga, perpassa a maioria dos partidos: a ideia de que política é mesmo o reino da opacidade moral e dos negócios escusos. E se o meio é a mensagem, a modernidade que permitem acessar e assistir à saga dos Underwood devem ter feito crer que, mais ainda, a política moderna fosse a elevação da rapinagem, da trapaça e em detrimento da utopia do bem estar coletivo.

No Poder Executivo, preferiu-se enxergar o Parlamento como um incômodo, em que o debate é improdutivo. Estabeleceu-se a superioridade do primeiro, que manda, sobre o segundo que, por interesse, obedece. Percepção autoritária que calcula ser mais barato contemplar interesses do que se enredar em custosas discussões de mérito. Por que lutar por detalhes de projetos, concepções cívicas, metafísicas e filosóficas se a liberação de emendas e o preenchimento de meia dúzia de cargos resolvem a maioria das divergências?

O Parlamento, por sua vez, se aviltou à condição de mercadoria barata; abriu mão de prerrogativas essencialmente políticas em nome do pragmatismo eleitoral: contentar as bases com obras, cercar eleitores com cargos, cabos eleitorais e recursos é mais negócio. Num evidente pacto de mediocridade, muitos se locupletaram.

Sob a direção de Eduardo Cunha, ocorreu a sublevação do sistema, não com a lógica da relação, mas com o quantum do acordo: o tanto de cargos e recursos já não era suficiente. Ademais, quem comprometeria capital eleitoral com a agenda impopular de um governo que saíra menor da eleição vencida apenas por um triz? Após três mandatos de liberações a rodo e incontinência de apetites, veio o colapso. A presidente e o PT que se virassem com a escassez de recursos do desastre econômico que causaram. A voracidade levou ao motim e, assim, ao rompimento do pacto.

Eduardo Cunha foi protagonista desse processo, ao seu modo: sem comedimento, sem conciliação. Foi levado ao centro do palco para isto: emparedar a presidente, que reagiu como as feras reagem: cheia de fúria, confiando na força que não tinha, na sagacidade que nunca possuiu; nas tolices de conselheiros desastrados. Sentado sobre o paiol de pólvora, Cunha ameaçou explodi-lo e de fato o explodiu. Ele não é de blefes; que ninguém se engane.

A vida é não é filme. Tampouco, uma história que sempre acabe bem; menos ainda a política é assim. Contudo, é preciso encontrar motivos para que nem sempre acabem, a vida e a política, mal; para que o clientelismo, o patrimonialismo e a rapacidade não sejam atávicos e prevalecentes. Aperfeiçoamentos institucionais e avanços sociais, às vezes, são possíveis. Os castelos de cartas – House of Cards – desmoronam pela mudança e persistência dos ventos.
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Carlos Melo é cientista político e professor do Insper.

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