sábado, 18 de junho de 2016

Brexit, o fim do mundo – Demétrio Magnoli

- Folha de S. Paulo

A imagem de uma multidão de refugiados caminhando pela estrada, sob o slogan "Ponto de ruptura" –eis a mais recente peça publicitária de Nigel Farage, líder do ultranacionalista Ukip, em campanha contra a permanência britânica na União Europeia (UE). Tudo ainda pode mudar, graças a uma onda de participação de eleitores jovens e ao genuíno engajamento do Partido Trabalhista na reta final da campanha. Contudo, faltando dias para o referendo, a média das sondagens indica vantagem para a proposta de ruptura. O Brexit (Britain exit, saída britânica) não significaria o fim do mundo –mas seria, em diversos sentidos, o fim do mundo que conhecemos.

"Nós, poucos; nós, felizes poucos": a mítica exortação de Henrique 5º a seus soldados, na versão de Shakespeare, ganharia um sentido desafortunado. O Brexit significaria o fim do Reino Unido, pois deflagraria um novo plebiscito na Escócia, com triunfo assegurado do separatismo. Os escoceses renunciariam ao Tratado de União de 1706 para permanecer na Europa, redefinindo sua identidade nacional. Longe da Europa, o Reino Desunido –"esta pedra preciosa depositada no mar prateado", "este pequeno mundo"– estaria condenado a declinar sob o cetro de uma triunfante direita nativista constituída pela soma do Ukip com os detritos xenófobos do Partido Conservador.


"O voto pela saída abalaria a União", estimulando "um nacionalismo que opõe os Estados europeus uns aos outros", alertou o ministro do Exterior alemão Frank-Walter Steinmeier. A UE é menos um fruto de Stalin, uma resposta à ameaça soviética da Guerra Fria, que um fruto de Hitler: a alternativa liberal aos nacionalismos descontrolados que reduziram a civilização europeia a uma pilha de ruínas. O Brexit não significaria necessariamente a implosão da UE, mas irrigaria um solo contaminado.

De Farage a Le Pen, na outra margem do Canal da Mancha, espraiando-se pelo AfD, na Alemanha, o FPO, na Áustria, o SVP, na Suíça, o DPP, na Dinamarca, e o Jobbik, na Hungria, florescem partidos ultranacionalistas inspirados pela "política do sangue". No interior da Europa aberta, supranacional, inventada no pós-guerra, emerge a sombra da "Europa de Putin": uma coleção de nações ciosas de suas soberanias, fechadas nos seus casulos de fronteiras, hipnotizadas pelo romance de suas culturas ancestrais. Atrás da visível decomposição do tecido geopolítico da UE, processa-se uma erosão de valores –ou, precisamente, uma regressão agônica rumo ao porto de outra época, que parecia enterrada.

Brexit, hoje; Donald Trump amanhã? A peça publicitária do Ukip funcionaria perfeitamente como estandarte da campanha de Trump, com a mera substituição dos refugiados sírios pelos imigrantes mexicanos. O nativismo circula dos dois lados do Atlântico, como um sintoma da crise geral das democracias ocidentais. Na invocação histérica do "perigo estrangeiro", muçulmano ou hispânico, encontra-se a lógica de uma gramática política que desafia o contrato de direitos e liberdades concluído na sequência das sangrentas catástrofes do século 20.

As fontes superficiais da crise das democracias podem ser identificadas na depressão econômica precipitada pelo crash de 2008, mas suas raízes são bem anteriores. As tendências conexas da crescente desigualdade de renda e estagnação dos salários reais desenvolvem-se há um quarto de século, movidas tanto pela revolução tecnológica quanto pelo ingresso da China no palco da globalização. Numa dinâmica não linear, pontuada por injeções anabolizantes de crédito e dívida pública, as classes médias experimentam contração de longo prazo.

"Please, don't go!", apelou em manchete o semanário alemão Der Spiegel, numa edição especial sobre o Brexit. Os britânicos ainda podem evitar o desastroso desenlace, oferecendo uma segunda chance ao mundo que conhecemos.

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