quinta-feira, 2 de junho de 2016

Dois partidos num só - Maria Cristina Fernandes

• Faltam interesse e arbitragem à tese das eleições diretas

- Valor Econômico

"A principal força de oposição ao antigo regime teve de assumir papel preponderante na administração do momento transitório". A frase parece tirada de uma análise do PSDB sobre sua participação no governo Michel Temer, mas a impressão não resiste ao parágrafo seguinte: "O PMDB não teve a vantagem de se preservar para o governo pós-transição como aconteceu com o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e outros. Ao contrário, sua participação na transição foi imprescindível".

A semelhança prossegue mesmo quando se nomeiam os bois. PSDB e PMDB foram - e voltariam a ser - uma coisa só: "Como todo governo de transição, o que hoje temos no Brasil sofre de aspectos de instabilidades, equilíbrio precário de forças, etc. Isto desgasta o PMDB, motor principal da mudança, mas que teve de participar da própria gênese de construção democrática, ao invés de se preservar para assumir depois da democracia consolidada, como alternativa".

O texto é de julho de 1987 e saiu na "Revista do PMDB", editada pela fundação do partido, à época presidida pelo senador Severo Gomes. Como não é assinado, o texto deve ter saído do consenso do seu conselho editorial, que tinha como mais ilustres representantes, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o atual ministro das Relações Exteriores, José Serra, e os economistas Maria da Conceição Tavares e Celso Furtado.


Já se vão 30 anos desde que o governo José Sarney adiou os ajustes no Plano Cruzado e inaugurou a linhagem de estelionatos eleitorais da história para dar ao PMDB metade do Câmara e a quase totalidade dos governos estaduais. O texto acima coincide com a publicação das teses - sim, o PMDB já as teve - do primeiro Congresso do partido, com o projeto da nova Constituição, que emergia com o desacordo de muitos dos seus integrantes, e com o azedume do eleitorado em relação ao Plano Cruzado II. Dali a um ano aconteceria a diáspora que deu origem ao PSDB.

A memória daquele desconforto de três décadas atrás pode explicar tanto as reticências de parte do PSDB em relação a Temer quanto a decisão deste em amarrar os tucanos ao seu destinos. O partido que tem duas pastas (Relações Exteriores e Cidades), além da indicação para a maior estatal (Petrobras) pôs fim à hesitação ao confirmar Aloysio Nunes Ferreira na liderança do governo no Senado, fórum decisivo à continuidade desta gestão.

Talvez não houvesse a alternativa de que falava a "Revista do PMDB". A conjuntura oferecia os riscos de o PSDB e o PMDB serem alijados da disputa presidencial, como o foram em 1989. Basta lembrar o que disse o ministro por 11 dias, Romero Jucá, às vésperas da cassação, ao gravador de Sérgio Machado: "Esquece, nenhum político desse tradicional ganha eleição, não".

A constatação de que o sucesso do governo Temer é a única condição para o PSDB voltar ao poder é a principal arma do presidente interino contra a alternativa das eleições diretas, que já começou a frequentar os cenários de quem dita preço no mercado financeiro.

O freio na Lava-Jato era clásula pétrea dos aliados de Temer. Com uma política econômica a apertar o torniquete das políticas públicas, a propinagem seria a única maneira de irrigar e dar sobrevida às suas bases parlamentares. Na medida em que se fecham as duas saídas, é natural que os parlamentares passem a questionar qual a serventia do presidente de plantão. O mercado, na definição de um experiente operador, não estava cego a esta realidade, mas daltônico. Quis enxergar o governo interino pelo anil de sua equipe econômica e fingiu desconhecer a palheta de cores com a qual um inquérito policial pode pintar a conjuntura.

Há hoje, no entanto, mais empecilhos políticos que aritméticos à viabilidade das eleições diretas. A admissibilidade do julgamento de Dilma passou por dois votos. Um governo que perde dois ministros na largada e obriga seu chefe interino a fazer um desmentido por dia do sincericídio de seus ministros não custaria a virar o placar contra si, mas a empreitada tem sócios com motivos para lhe dar continuidade.

Um deles é fazer andar no Congresso as intenções de Henrique Meirelles. A aprovação folgada da meta fiscal ou o provável aval parlamentar à Desvinculação das Receitas da União (DRU), extensiva a Estados e municípios, não podem, no entanto, ser considerados provas de fogo deste governo. Ambas as votações acomodam interesses, não os confrontam como o fazem aquelas que impõem limites aos gastos sociais ou garroteiam a Previdência.

Os votos que podem devolver Dilma Rousseff ao Palácio do Planalto estão casados com a tese das eleições diretas, mas a estas faltam tanto uma liderança nacional que arbitre a disputa quanto o interesse de partidos para enfrentá-la. Quantos deles hoje dispõem de nomes prontos para uma campanha - Rede (Marina Silva), PDT (Ciro Gomes) e PSC (Jair Bolsonaro)?

Dado que parece inevitável o ajuste fiscal, esses pré-candidatos talvez prefiram que Temer termine sua tarefa, para que não sejam obrigados a contribuir com mais um capítulo do compêndio de estelionatos eleitorais.

Restaria ao TSE dar andamento ao processo de cassação da chapa Dilma/Temer, mas o tribunal seguirá presidido pelo ministro Gilmar Mendes, cuja capacidade de se moldar aos interesses com os quais está aliançado não podem ser postos em dúvida.

Faltam, portanto, adversários de peso no mercado político à continuidade de Temer. O presidente interino se afiança nas concessões que é capaz de fazer a interesses que dispensaram intermediários e tomaram assento na Esplanada. A Lava-Jato faz com que tudo pareça temporário nessa interinidade. É daí que Michel Temer parece tirar sua força.

Na apresentação daquela "Revista do PMDB", Severo Gomes advertia sobre o risco de o partido perder sua identidade: "Não seria a primeira vez, na História recente deste país, que uma agremiação largamente majoritária desapareceria, tragada pelas urnas, por não ter sabido honrar os compromissos assumidos com o povo". O figurino, desta vez, cabe com perfeição no PT, que tem cinzas espalhadas em seu futuro eleitoral. Ao dueto PMDB/PSDB cabe reger esta interinidade, dar-lhe fôlego e afastar pelo maior período possível qualquer escrutínio popular. A trégua que lhe dão os institutos de pesquisa é uma demonstração do sucesso da estratégia.

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