sábado, 25 de junho de 2016

Esquerda: Uma categoria, ainda, útil? – Elimar Pinheiro do Nascimento (*)

Revista Será? (PE)

Incitado por um jovem estudante que, coisa rara, se interessa por política e sofre amarguradamente o dilema de qual posição política adotar, resolvi algumas poucas linhas na esperança de lhe ajudar, e com ele outros que tenham o mesmo interesse. Em particular abordo o seu dilema de ser ou não de esquerda! Há vinte anos não teria dúvidas. Hoje penso diferente. As certezas de vinte anos foram substituídas por dúvidas. De toda forma tanto ontem quanto hoje faço esforço para compreender o contexto social em que nos encontramos e qual a melhor posição para criar uma sociedade mais racional, mais justa, mais democrática e hoje acrescento, mais sustentável.

A força da tradição, da inércia social, de repetirmos aquilo que aparentemente perdeu seu sentido, é maior do que imaginamos. Não adianta ler, entender ou concordar com Mayer (A força da tradição), pois ela é mais presente, e mais forte, do que supomos. Nos apegamos às formas antigas e consolidadas de pensar de maneira persistente, sem percebermos que o mundo mudou e que muitas das ideias antigas não têm mais validade, não possuem mais pertinência para explicar a sociedade na qual vivemos. Em parte, isso se deve a nossa ojeriza ao novo. Nossa resistência em sairmos de nossa posição de conforto. Conta igualmente a nossa capacidade de autoengano, para mantermos a zona de conforto em que fomos acostumados. Um exemplo é o uso da categoria política de esquerda, criada no final do século XVIII entre os franceses. O mundo deu mil voltas, é completamente distinto do final do século XVIII, contudo, continuamos a usa-la. Em um contexto tão diferente como o que vivemos atualmente será que ainda tem sentido?


As correntes de pensamento (filosófica, ideológica e politica) que ainda se dizem de esquerda no mundo não cabem em uma categoria ou em um campo. Elas são extremamente díspares entre si. Apenas a título de exemplo, e bem simples. Algumas visualizam um paraíso terrestre como destino da humanidade (marxismo, comunismo), outras (social democracia, socialismo democrático) preferem uma sociedade gradativamente mais democrática e mais justa, visto que aquele paraíso é não apenas uma utopia (inalcançável), mas uma utopia autoritária.

As divergências são não apenas no objetivo, mas também no método. Umas correntes preferem o caminho da revolução, da disruptura e, portanto, da violência. Outras preferem o caminho do aperfeiçoamento institucional, as mudanças pela ampliação da democracia e do mercado, pela inclusão socioeconômica, extinção da pobreza e redução da desigualdade (socialismo ou o liberalismo democrático). Duas posturas não apenas contraditórias, mas antagônicas.

Enfim, o mar de correntes que se reclama da categoria esquerda é repleto de tantas contradições entre si que a torna inútil do ponto de vista teórico. Por exemplo, ser de esquerda hoje no Brasil significa para muitos apoiar a permanência dos direitos dos trabalhadores, defender a igualdade de gênero, de “raça” e de estilo de vida sexual, como também da autonomia de vida dos indígenas. Mas, também, a defesa da progressiva democratização da sociedade e da inclusão social, com erradicação da pobreza e redução da desigualdade. Portanto, há uma identificação entre direitos humanos, justiça social e esquerda. Ora, esta identificação é apenas parcialmente verdadeira do ponto de vista teórico e prático.

Do ponto de vista teórico, muitas correntes políticas que normalmente não consideramos de esquerda apoiam os direitos humanos, desde os conservadores democráticos aos liberais, vide por exemplo John Rawls, com sua teoria da justiça, ou Macpherson, com sua teoria da democracia, entre muitos outros. Por outro lado, há muitas divergências sobre qual a melhor maneira de, simultaneamente, assegurar e ampliar os direitos. Quais direitos? Os já existentes? E os que não acessam estes direitos, é possível incluí-los? Certos direitos não se tornaram regalias injustas?

A sociedade brasileira é atravessada pelo corporativismo, privado e público, entre os trabalhadores e entre os empresários, em sindicatos e organizações esportivas. Muitas destas corporações consideram os seus privilégios como direitos. Mantê-los é ser de esquerda?

Ninguém diverge de que o mundo mudou muito entre o século XVIII e hoje, mesmo entre meados do século passado e hoje. Como não se discute a relevância do respeito à diversidade humana, da redução da desigualdade, da erradicação da pobreza ou da consolidação e ampliação da democracia. Este é um repertório presente nas diversas correntes políticas modernas, desde o socialismo democrático aos liberais, incluindo parcela importante dos conservadores. Mas persistem divergências, e relativamente distintas, segundo o país ou o contexto social que seja considerado.

A distinção “ser de esquerda”, tem uma utilidade política, na medida em que a imagem relacionada à esquerda goze de prestígio na sociedade. Entretanto, temo que no Brasil isto esteja em vias de se encerrar. Por dois aspectos distintos, entre tantos outros, mas que se auto-alimentam. O primeiro é a mudança na estrutura da sociedade brasileira. O avanço da economia de mercado, com o individualismo e o consumo de massa, tem fortalecido a emersão da categoria do consumidor em detrimento da categoria de cidadão. Aos poucos o País toma aquilo que Mario Covas desejava fazer nas eleições de 1989 – “um choque de capitalismo”. As ideologias, e sobretudo de esquerda, tornam-se os pincenês, bengalas e chapéus de antigamente.

Em outro aspecto a sociedade brasileira tem se revelado cada vez mais conservadora, tanto do ponto de vista social quanto político. Diversas pesquisas de opinião mostram como os brasileiros tendem a ter posturas contraditórias (o que é normal) e mais próximas do conservadorismo. O que não deveria nos espantar, afinal as pessoas preferem o familiar ao desconhecido.

Em antigo artigo (Estado integral, democracia e movimentos sociais urbanos, 1987) defendi a mesma ideia supracitada: os movimentos sociais brasileiros, novos ou antigos, têm em comum a expressão de desejo de inserção social. Eles falam menos de mudanças substantivas, tidas normalmente como de esquerda, do que de mudanças conservadoras de inclusão no mercado de trabalho e consumo. O MST pede terra, o que torna o “incendiário” (sem terra) em “bombeiro” (produtor agrícola, produtor de mercadorias); os sindicatos de trabalhadores pedem mais salário, melhores condições de trabalho o que, em última instância, serve à consolidação da economia de mercado; o movimento feminista pede tratamento igual de gênero, o que reforça igualmente a economia de mercado. Claro que no âmbito de uma sociedade de exclusão social, como a nossa, estas demandas, se afirmativamente respondidas, podem redundar em transformações significativas, mas no sentido de reforçar o sistema vigente, aperfeiçoando-o.

Porque estas posturas são conservadoras? Por que elas se adequam ao pensamento conservador, fazem parte de sua essência. O pensamento conservador nada tem de reacionário. Enquanto este se opõe à mudança, o outro considera a mudança essencial, mas de forma gradativa, sem destruir as conquistas realizadas, as instituições comprovadas. Os movimentos sociais brasileiros, desde a luta de bairro nos anos 1970, passando pelo novo sindicalismo, até a luta de gênero, etnia e por terra, são todos demandantes de inclusão social. Batem as portas do regime para ingressarem e serem considerados iguais, revestidos de direitos e consumidores.

Há outro motivo. A excessiva identificação da esquerda com o PT, na medida em que este partido se afunda na imagem da corrupção e incompetência, leva consigo a imagem da esquerda. Agora, sem o prestígio do tempo da luta pela “ética na política”.

Mas, as razões da perda de sentido da categoria esquerda não se devem tanto à existência de contradições entre seus diversos componentes, ou ao fato de seus atores serem gradativamente mais conservadores, ou mesmo da perda de seu prestígio social. As razões maiores encontram-se além, nas mudanças dos conflitos e dos dilemas e desafios da sociedade contemporânea.

Os dilemas que vivemos hoje não são aqueles que viveram nossos antepassados no início do século XIX na Europa ou no início do século XX no Brasil. Os dilemas são outros, embora alguns dos passados persistam. Mas mesmo estes têm uma dinâmica ou roupagem distintas.

Alguns dilemas antigos persistem e mesmo se agudizaram, como a pobreza na África e a desigualdade no mundo. A configuração destes problemas, contudo, não é a mesma e a forma de enfrentá-los também mudou. A questão da inserção social nos séculos XIX e XX era, sobretudo, uma questão trabalhista, nascida da expansão das estruturas produtivas industriais.

O emprego era a saída da pobreza e o aumento dos salários a forma de conter as desigualdades, articuladamente a oferta de serviços públicos de qualidade como a educação e a saúde. Hoje, a oferta destes serviços é ainda mais essencial à inserção social, mas esta não se produz mais pelo emprego industrial. Por isso, os sindicatos dos trabalhadores da indústria deixaram de ser instrumentos de inserção para se converterem em seu inverso, barreiras à inclusão.

Em suas lutas criaram um mundo privilegiado de trabalhadores industriais que, corporativamente, se opõem ao mundo dos excluídos do trabalho moderno. Mudou o mundo, mudaram os conflitos e os atores. É estranho que pareça normal, e da órbita dos direitos, que os trabalhadores tenham direito a ticket refeição ou ticket transporte e os desempregados não. O que vai trabalhar não paga o transporte, enquanto o que procura emprego e, portanto, sem salário, não.

Não vivemos mais o dilema da inserção dos trabalhadores, da criação de seus direitos, na industrialização nascente, como também não vivemos o dilema da construção de de regimes democráticos ou da formação do Estado Nacional. Afinal, já estão postos.

Os direitos trabalhistas estão assentados, mas em um contexto em que a indústria é cada vez menos importante e os serviços crescem. No mundo do trabalho os direitos têm que ser revistos em função das mudanças das estruturas produtivas. A questão social da inserção não diz respeito tanto aos trabalhadores da indústria – hoje uma elite – quanto em relação aos trabalhadores informais, por conta própria, terceirizados ou alocados na pequena produção urbana ou rural, na agricultura familiar.

O conflito capital trabalho não ocupa mais a centralidade que gozava nos séculos XIX/XX, pois, passou a conviver com outros conflitos e outros atores. A relevância dos direitos hoje se faz também e, sobretudo, fora do mundo do trabalho: na questão de gênero, de etnia e sexualidade. Fora do mundo do trabalho, mas a ele englobando, como as questões relativas à segurança pública, à habitação e à mobilidade urbana. Mas, sobretudo, o direito a uma educação de qualidade, e que seja a mesma para todos.

O regime democrático está consolidado, mas as formas de representação (partido, eleições e Parlamento) estão esgotando-se, sofrem de “fadiga de material”. Será necessário criar novas formas de representação política. Esta crise de representação política não é apenas brasileira, nem nasceu neste século. Ela tem presença internacional, vide as crises na Europa e no Oriente Próximo. Em todas as partes em que a democracia se assentou, e ela se expandiu muito nos últimos 30 anos, seus instrumentos entraram em crise, pois a participação tornou-se um rito, algo vazio, sem eficiência. Os representados não se reconhecem mais nos representantes. As práticas de apropriação ilícita dos bens públicos crescem no mundo todo. Os jovens falam cada vez mais de horizontalidade.

Alguns propõem candidaturas avulsas. Os Parlamentos são cada vez mais “monstros sociais”, anômalos, incompreensíveis, pois nunca se conheceu uma sociedade ou grupo humano que detivesse mais da metade de seus componentes como malfeitores. O que acontece hoje com alguns Parlamentos.

O Estado moderno foi criado e se ampliou, mas o crescimento de sua burocracia, a montanha de procedimentos em que está envolvido, torna-o um equipamento absolutamente ineficiente, caro e dispendioso, como já o denunciava Michel Crozier (O fenômeno burocrático, 1964) há meio século. A arrecadação de impostos aumenta em todo o mundo, sem que a qualidade dos serviços tenha qualquer correspondência. O Estado torna-se algo incômodo para a sociedade, perde sua legitimidade. No entanto, é um instrumento essencial na geração do equilíbrio social, pois a ele cabe as funções essenciais da segurança, da coesão social e dos limites suportáveis de desigualdade. E hoje não desempenha satisfatoriamente nenhuma destas funções. Urge pensar um Estado completamente distinto. E, no entanto, não o conseguimos. Este é um desafio relevante e urgente.

Todos antigos problemas e dilemas que vieram se desenhando na trajetória dos séculos XIX e XX, mas com uma conformação absolutamente distinta, hoje. A principalidade do conflito capital trabalho sumiu, não tem mais a capacidade de ordenar a sociedade, pois convive com outros conflitos. Em meio a uma sociedade mais complexa e com novos conflitos e atores, como os consumidores, por exemplo. Há quatro décadas estes atores não existiam, nem suas organizações, como há meio século atrás apenas tinha início a luta das mulheres por respeito e igualdade. Entre tantos outros conflitos e transformações recentes que mudaram nossa forma de produzir, nosso estilo de vida, nossas representações do mundo.

Finalmente, para não cansar o leitor, o último e mais importante um novo dilema surge em meados do século passado: a da sobrevivência da humanidade em face dos riscos advindos de um modelo de desenvolvimento que usa abusivamente, e perigosamente, dos limitados recursos naturais de que dispomos. Como impedir que a crise ambiental se acelere e venha ameaçar a todos? Estamos assistindo quase que impassíveis aos indícios da catástrofe: crescimento das temperaturas, aumento dos eventos climáticos críticos, escassez de recursos hídricos, desertificação crescente, perda de biodiversidade, contaminação dos mares. E, no entanto, como um fleumático inglês caminhamos para o abismo. Apenas porque não temos 100% de certeza da catástrofe. Contudo, quando o médico nos diz que temos 50% de chances em ter um infarto não titubeamos e nos submetemos à cirurgia, mudamos de vida.

Todas estas mudanças, todas estes novos conflitos e dilemas, assim como as mudanças de dinamismo dos antigos, demandam um novo modo de pensar que nada tem a ver com esquerda e direita. Tem a ver com a capacidade de criar esquemas explicativos e proposições de ação que sejam atraentes do ponto de vista filosófico, convincentes do ponto de vista político e eficientes do ponto de vista operacional.

Este é o desafio do novo.
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(*)Sociólogo, professor no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília

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