domingo, 12 de junho de 2016

Moralismo popular versus política - José de Souza Martins

• O voto de uma deputada federal desconhecida, Tia Eron, desenhará os rumos do País. Depois desse voto, ela nunca mais será a mesma

- O Estado de S. Paulo

O moralismo popular tem sido o fundamento da precária consciência política dos que, de um lado e outro das polarizações ideológicas, desde o mensalão e particularmente desde as manifestações de 2013, vão às ruas e pedem a cabeça de alguns acusados de corrupção ou pedem o reconhecimento de sua inocência. Mas o moralismo popular colide com a política, que é amoral. E é melhor que ela seja assim. Os que defendem os acusados e lhes reconhecem a inocência fazem-no na concepção imoral de que é lícito usar imprópria e indevidamente o dinheiro e o patrimônio públicos em favor de partidos que tem o presumível mandato de beneficiar os pobres e simples, e para eles governar. O que lhes daria o direito de recorrer à corrupção. Porém, na cultura popular brasileira, corrupção é coisa de ladrão, ladrão é ladrão e gente é gente.


O que marca este momento da história política brasileira não é a suposta falta de vergonha dos acusados, mas de fato a falta de política dos acusadores. Partidarizados, mas despolitizados, estamos em face de um enorme imbróglio que só se resolverá com política e não com moralismo nem se resolverá com os simplismos e deformações das ideologias. Chegou a hora dos profissionais das instituições e terminou a hora dos amadores das ruas. E seja o que Deus quiser.

Não é impossível que os que estão sob suspeita e mesmo acusação sofram a metamorfose de se converterem no contrário do que são, em nome do primado das instituições. Sem metamorfoses de consciência e de protagonismo, dificilmente superaremos os impasses com os quais nos defrontamos. Entre nós, as apurações da Polícia Federal e da Justiça nos falam menos de delinquentes propriamente ditos do que de pessoas com graves limitações de formação política, tanto na esquerda quanto na direita, que tem uma concepção pobre, deformada e inescrupulosa de seu protagonismo político.

As próprias instituições, cujas funções essas pessoas desempenham, num cenário modificado pela centralidade da ética e dos éticos que atuam nas investigações e nos julgamentos, já as estão, de vários modos, chamando a desempenhar o papel, ainda que temporário, de funcionários do bem. Mesmo que com o risco da má intenção de se aproveitarem da realidade política adversa para no futuro continuarem a colher frutos das irregularidades que são capazes de cometer. Algo como ceder os anéis para preservar todos os dedos.

A dimensão teatral esclarecedora está no protagonismo inesperado de uma deputada federal desconhecida, Tia Eron, chamada a colocar-se de um lado ou de outro da disputa política. Seu voto na Comissão de Ética desenhará os rumos políticos do País.

Dependendo do que decidir, o voto de Tia Eron definirá sua personalidade, nunca mais será a mesma pessoa, encarnará para sempre o acerto ou o erro, o bem ou o mal, a Pátria ou o fisiologismo político. Seu voto nos dirá se os fundamentos éticos da verdadeira política, inscritos nas instituições e no que nos resta de consciência cívica, capturaram sua personalidade ou foram capturados por aquilo que a ética popular repudia.

Só que a boa opção da deputada se tornará, fatalmente, a má opção da política. Sua opção ética dará ao processo político o rumo que anulará tudo que o moralismo popular tem pretendido e também o que a política carece, no limite com o impedimento da presidente da República que teria administrado mal a coisa pública, violando a Lei de Responsabilidade Fiscal. É que a trama que vitimou a presidente, vitimou também o País e se não for desatada o País é que pagará o preço do erro. Não é o caráter da presidente que está em julgamento, é o ato que a definiu pelo ilícito de que é acusada. Minúcia que o moralismo popular tem muita dificuldade para compreender.

Esse moralismo se baseia numa pauta estreita de referências para julgar pessoas e situações. Aprisionado entre o honesto e o desonesto, é essencialmente incompatível com a política. Para sair da crise pela via institucional, o País não pode varrer de vez os corruptos e a corrupção. Precisa do apoio dos que investidos em mandatos legais e legítimos podem ou não viabilizar a apuração de responsabilidades e decidir pelo afastamento do poder daqueles que cometerem ilícitos e envolveram-se em irregularidades.

Porém, tudo tem seu tempo e hora. Se todos os acusados de corrupção e irregularidades fossem de uma só vez afastados do poder e das funções políticas que ocupam atualmente, mesmo sendo minoria e minoria poderosa, o País provavelmente entraria em outra crise.

O populismo que domina nossa concepção de política não reconhece a desonestidade eventual dos pais dos pobres. A alternativa, por outro lado, fere a consciência dos íntegros e dos que se pautam por uma sólida moral: graduar o afastamento político de corruptos e suspeitos que ocupam posições sólidas na estrutura de poder para que, em face da circunstância, cumpram o dever de suas funções, removam os de remoção prioritária e viabilizem as mudanças e reformas de que o país carece com urgência.

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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras, escreveu entre outros livros, A política do Brasil lúmpen e místico (Contexto)

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