domingo, 12 de junho de 2016

Pilares da lei - Míriam Leitão

- O Globo

No ambiente incandescente da sala de reunião da Comissão do Impeachment, o auditor fiscal do TCU não altera o tom de voz sereno. “Enquanto a sociedade pagar o meu salário, eu vou fiscalizar o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal”. E disse que desrespeitá-la era “atentar contra a democracia”. Essa crise está mostrando a força das leis e das instituições brasileiras.

O auditor é Antônio Carlos Costa D’Ávila e foi ele quem detectou, numa auditoria, as pedaladas do governo Dilma. “Não posso acreditar que estão fazendo isso”, espantou-se quando descobriu os truques contábeis. Diante das primeiras respostas do governo aos seus questionamentos, negando as irregularidades, ele disse que sentiu um “frio na barriga” e pensou que estivesse errado. Não ficou feliz em confirmar que estava certo. Fora montado um esquema através do qual os bancos públicos financiavam o governo, e o Banco Central, responsável pelas estatísticas, não as registrou. Explicou que é muito difícil fiscalizar um governo, que tinha na época 38 ministérios, e cujo órgão oficial, que deveria mostrar os números, os escondeu.


Antes dele, falara mais uma vez naquela comissão o procurador de contas junto ao TCU Júlio Marcelo de Oliveira. Também manteve o tom objetivo mesmo diante de quem elevava a voz. Júlio Marcelo defendeu com palavras fortes a Lei de Responsabilidade Fiscal:

— Esta lei nasceu da experiência desastrosa e trágica da hiperinflação, por isso acho um sacrilégio desrespeitá-la.

Quem são esses guardiões da lei sobre um tema tão árido quanto o fiscal? São ambos pertencentes a burocracias ou instituições que ficaram mais poderosas após a Constituição. O Ministério Público de agora não é o mesmo de antes. Desse novo MP sai tanto o procurador de contas, que ficou conhecido nesse processo de impeachment, quanto os que estão na Força-Tarefa da Lava-Jato ou em outras investigações. No TCU, os ministros são indicados pelos políticos, mas o corpo de auditores é técnico.

Antônio Carlos entrou no Banco do Brasil em 1983. E pôde ver a escalada da inflação. Faz parte de uma geração que carrega a dolorosa experiência do drama que infelicitou por tantos anos o Brasil. Depois, ele trabalhou no Banco Central, exatamente no setor que registra as estatísticas fiscais. Foi então para o TCU. Entende o seu papel como defensor da lei que viu nascer dos escombros de uma economia que passou pelo processo hiperinflacionário.

Júlio Marcelo tem a mesma visão da centralidade da LRF para garantir a estabilidade. Diante das muitas perguntas dos defensores da presidente Dilma, duvidando de que os atrasos nos pagamentos fossem irregularidade, ele explicou que a história do Brasil está repleta de casos de bancos que sofreram abusos dos governantes e foi por isso que se fez a lei.

— Se for aceitar isso, rasgue-se então o artigo 36 (o que proíbe os empréstimos) — disse.

Os dois ressaltaram dois princípios fundamentais. Na economia, o desrespeito à estabilidade fiscal produz, como reflexo, a crise que o país vive hoje, com recessão, inflação e desemprego. O controle fiscal não é ideologia, é prevenção contra crises. Na política, o princípio que defenderam é que ao usar ilegalmente os bancos públicos, e fraudar as estatísticas, o governo abriu espaço por mais gastos em ano eleitoral. E isso afetou o exercício da democracia.

Os dois mostraram enorme respeito pelo Congresso, mas nenhuma subordinação. Júlio Marcelo, porque é do MP, instituição independente. Antônio Carlos explicou a situação do TCU:

— O TCU é órgão auxiliar, mas não subordinado ao Congresso. Pela Constituição, o Poder Legislativo fiscaliza as contas com o auxílio do TCU.

Os dois estão orgulhosos dos órgãos que representam. O fato de a LRF ter provocado tal debate fortalece a lei. Era tarde da noite quando a sessão acabou. Naquele mesmo momento a manchete da edição online deste jornal era que o novo delator, Zwi Skornicki, havia pago, com depósitos na Suíça, na conta do marqueteiro João Santana, despesas de campanha da presidente afastada Dilma Rousseff. Não faltam indícios de crime de corrupção. Mas tem feito bem ao Brasil que o debate do impeachment seja sobre a lei fiscal.

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