quarta-feira, 22 de junho de 2016

Um novo pacto institucional - Murillo de Aragão*

- O Estado de S. Paulo

O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff não expôs apenas sua fragilidade, sua inconsistência política e sua visão distorcida do que seja presidencialismo de coalizão. Além dos fatores conjunturais de uma presidência trágica, o episódio mostrou que os sinais vitais de nossa democracia estão comprometidos.

O problema ultrapassa as individualidades e a conjuntura governamental. O pacto institucional e federativo inaugurado com a Constituição de 1988 se exauriu.

Acabou, junto com o naufrágio do capitalismo tupiniquim, do modelo de financiamento da política e do aparelhamento do Estado pelo PT et alii.


A coincidência dos vetores do fracasso não é casual. Todos se alimentaram de uma roda da fortuna que envolvia política, poder, verbas e favores. Tudo capitaneado por um Poder Executivo hipertrofiado e um Legislativo entre complacente e cooptado.

Enquanto a fórmula lulista teve recursos e saliva, funcionou. Quando Dilma acabou com o diálogo, começou a falhar. Com a destruição da credibilidade fiscal, tudo foi à bancarrota. O processo de impeachment foi a saída encontrada pelo sistema. Para facilitar, Dilma preencheu o formulário com uma coleção de malfeitos.

Mas o problema é mais sério. A crise que vitimou a administração Dilma é uma complexa combinação de fatores estruturais com a grosseira incompetência de uma política inepta. Tudo dentro de uma estrutura institucional desequilibrada com um sistema político-partidário doentio.

O que fazer? A resposta do impeachment não é suficiente. Desejável em todos os aspectos pela grotesca combinação de irresponsabilidade fiscal com incompetência, servirá para propiciar o recomeço no País. Porém, temos de ir além da conjuntura. Devemos atacar também aspectos estruturais de nosso sistema institucional.

São, pelo menos, cinco os aspectos críticos que devem ser considerados: a hipertrofia do Poder Executivo, a excessiva fragmentação partidária, a representação política desequilibrada, o federalismo de mentira e o processo legislativo anacrônico.

A hipertrofia do Poder Executivo vulnera nossa democracia ao apequenar os outros Poderes ante sua hegemonia. Como esta se revela? No controle quase absoluto da execução do Orçamento da União. No uso abusivo e inconstitucional de medidas provisórias. No controle de metade do sistema financeiro nacional. Na imensa capacidade de cooptar com verbas e cargos. Na interferência da desejada autonomia de organismos regulatórios, entre outros aspectos.

A fragmentação partidária, a maior da nossa história e a maior entre as principais nações do mundo, é um fenômeno abjeto que denigre a política e a cidadania. Na prática, impede a criação e a consolidação de partidos programáticos. Promove um balcão de negócios com a venda de vagas em coalizões e do tempo de televisão. Além de sustentar, com o dinheiro do contribuinte, alguns parasitas em partidos de mentira.

Outro fato gravíssimo é o sistema eleitoral. O Brasil não perdeu a chance, como diria o economista Roberto Campos, de perder a chance de fazer uma reforma política. Por covardia institucional, deixamos de pôr um freio à fragmentação partidária e de reformar um sistema eleitoral anacrônico.

O anacronismo do sistema eleitoral está em permitir coalizões de partidos em eleições proporcionais, o que mascara a expressão partidária da sociedade. Outra distorção é o voto proporcional, que faz com que os mais votados nem sempre sejam os eleitos. Além do mais, o peso do eleitor varia por Estado. Em São Paulo, um deputado federal representa mais de 600 mil habitantes. Em Roraima, representa pouco mais de 60 mil. Um brutal desequilíbrio que deve ser corrigido mediante a imposição de uma proporcionalidade real.

O problema federalista no País é complexo e antigo. Não funcionava bem antes da redemocratização; não funciona adequadamente na pós-redemocratização. Após a redemocratização, a Federação no Brasil, como poucas no mundo, passou a ser trina, pois é composta de União, Estados e municípios. Tal fato não levaria a maiores distorções se a hierarquia de competências e a repartição de receitas fossem rigorosamente estabelecidas e cumpridas. Não é o caso.

O quinto fator é o processo legislativo. Basicamente, três aspectos devem ser considerados de forma emergencial. O primeiro é o limite à edição de medidas provisórias. O governo deve ser limitado a editar apenas uma medida por mês, e com limitação temática. Não podemos ter medidas provisórias “multiuso” nem elas podem ser “emprenhadas” no Congresso por assuntos estranhos. Além disso, sua validade provisória só deve viger após exame da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal.

O segundo aspecto é que se deve buscar a racionalidade do processo legislativo com uma comissão de harmonização entre as duas Casas em favor de um verdadeiro bicameralismo. A harmonização promoveria o encontro de opiniões e aceleraria o processo decisório de temas relevantes, bem como eliminaria a duplicidade de iniciativas.

O terceiro aspecto se refere à organização da agenda de debates e votações, que deve ser amplamente divulgada. A cidadania deve saber o que está sendo votado. Sessões extraordinárias devem ser limitadas a temas emergenciais. As iniciativas devem ser racionalizadas. Não adianta ter milhares de projetos de lei tramitando sem consequência nenhuma.

Precisamos aperfeiçoar nossa tão jovem e já envelhecida democracia. O atual momento de crise é uma oportunidade excepcional para colocarmos os cinco temas aqui apontados em discussão. Não podemos desperdiçar essa oportunidade. É hora de debatê-los.
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*Murillo de Aragão é advogado, cientista político e consultor e mestre em Ciência Política e doutor em Sociologia pela UNB

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