sexta-feira, 22 de julho de 2016

Em busca do melhor Estado - Fernando Abrucio

- Valor Econômico

A crise política e econômica atual tem no modelo de Estado uma de suas principais peças. Isso não quer dizer que os objetivos colocados desde a Constituição de 1988 estejam em questão. O combate à desigualdade, a busca do desenvolvimento num sentido mais amplo - econômico, social, ambiental, cultural - e a democracia como valor inegociável continuam sendo os pilares do país, aprovados pela maioria dos brasileiros. O que está em jogo é como fazer essas metas se tornarem realidade. E, para isso, não se trata de ter mais ou menos atuação governamental. O segredo está na melhoria e modernização do Estado, algo vinculado fortemente à qualidade da gestão pública.

Tal diagnóstico não parte do suposto de que a gestão pública brasileira não melhorou nas últimas décadas. Ao contrário, houve vários avanços, incluindo, em primeiro lugar, a capacidade de expandir fortemente serviços que nunca tinham chegado à maior parcela da população. Com todos os problemas do SUS e da educação, é inegável que o grau de universalização alcançado nesses setores foi uma revolução em comparação ao passado escravocrata e excludente do país.


Também deve se destacar o reforço da profissionalização do serviço público, principalmente (mas não só) no plano federal. O princípio do concurso público se ampliou para grande parte da burocracia, quando antes prevalecia, em quase todo o aparelho estatal, a patronagem e o apadrinhamento. Esse processo foi iniciado pela Constituição de 1988 e foi referendado pelas regras sistêmicas das principais políticas sociais. Foi decisiva, ademais, a atuação do ministro Bresser-Pereira, durante o primeiro governo FHC, que reconstruiu e ampliou o leque das carreiras de Estado do governo federal, processo este que foi continuado durante a era Lula.

O avanço apareceu, ainda, na adoção de instrumentos mais refinados de gestão por governos de vários matizes partidários. Modelos baseados na orientação por resultados foram inicialmente propostos, mais uma vez, pelo ministro Bresser-Pereira, e continuaram a ser usados em algumas políticas estratégicas, como o Bolsa Família, cujo sucesso se deveu muito ao uso de ferramentas de monitoramento por meio de indicadores. Governos estaduais como os de Pernambuco, Minas Gerais, Acre e Espírito Santo, para citar alguns deles, utilizaram igualmente dessa lógica de gestão. Nesta mesma linha de raciocínio, vale citar o crescimento dos processos de avaliação, com destaque para a área educacional, tendo o Ideb como síntese de um movimento muito maior de colocar termômetros mais precisos para compreender os resultados das políticas públicas.

Coroando esse processo de mudança, foram criados mecanismos para democratizar o poder público, algo essencial num país de tradição autoritária e com um aparelho estatal opaco à sociedade. A utilização de mecanismos de participação popular expandiu-se em diversas políticas públicas, mormente no plano subnacional, dando maior espaço para a população influenciar a agenda pública. A transparência das informações públicas foi outro ponto no qual houve avanços, especialmente com o uso de ferramentas de governo aberto, pela via da internet, por meio de centrais de atendimento integrado aos cidadãos e, mais recentemente, por intermédio da Lei de Acesso à Informação.

O reforço dos órgãos de controle, impulsionado pela Constituição de 1988, é mais um dos capítulos da modernização da gestão pública. Não haveria a Operação Lava-Jato e outras afins nos últimos anos sem que tal mudança tivesse ocorrido - lembrando que a era petista teve, paradoxalmente, um papel central no aumento da capacidade e da autonomia de atuação das instituições fiscalizadoras. Ao fim e ao cabo, políticos e burocratas têm de responder muito mais à sociedade hoje do que no passado. É a revolução da "accountability" pela qual o Brasil está passando.

Todos os avanços obtidos, no entanto, não finalizaram a trilha de reformas da gestão pública necessárias ao país, seja porque em alguns casos foram insuficientes, seja porque noutros houve erros de diagnóstico ou novas realidades apareceram no meio do caminho. De todo modo, não se trata de adotar medidas tópicas de mudança. É preciso ter uma visão sistêmica da transformação do Estado, entendendo que a melhoria da administração pública serve aos três objetivos centrais que conformam o "espírito" da Constituição de 1988, conforme apontado inicialmente (combate à desigualdade, desenvolvimento num sentido amplo e democratização). Obviamente que a busca dessas metas tem de ser alterada de acordo com o contexto histórico, e, sem dúvida alguma, entramos numa nova etapa que exigirá ainda maior centralidade à qualidade da gestão pública.

O primeiro tema que chama atenção em época de "vacas magras" é o da eficiência. Sabe-se que, nos próximos anos, no mínimo não haverá aumento substancial de receitas, ao passo que as demandas continuarão a crescer. O ajuste fiscal só terá legitimidade política para ser realizado e mantido ao longo do tempo se for capaz de garantir a lógica do fazer mais e melhor com menos. Daí que é preciso encontrar meios que não podem ficar no mero corte de gastos. O uso de tecnologia da informação, a redução dos processos burocráticos e o empoderamento das organizações e seus membros, com a devida contratualização de suas ações, são algumas das medidas que podem ser adotadas nesse sentido.

O processo de profissionalização do Estado brasileiro precisa ser continuado, especialmente nos governos subnacionais, e mais fortemente nos municípios, onde falta muito capital humano para fazer com que os serviços públicos funcionem bem. Cabe ressaltar que não adianta mudar a lógica da gestão do orçamento e da gestão no plano federal se a implementação na ponta não tiver qualidade. Foi esse um dos principais fatores que levou os cidadãos às ruas em 2013, e os tecnocratas de Brasília não devem se esquecer disso.

Mas não basta recrutar por concurso público mais gente qualificada academicamente para melhorar a gestão pública. Essa é uma condição inicial, porém insuficiente se não houver uma política para selecionar o perfil e capacitar os mais talentosos para resolver os desafios das políticas públicas. Em outras palavras, é preciso ter outras ferramentas de gestão de pessoas no setor público para dar um salto em seu desempenho. Por exemplo, ter maior capacidade de selecionar pessoas segundo o perfil exigido para a função, e não só por provas "conteudistas". A capacitação dos funcionários é outro elemento que deve mudar, devendo ser feita de acordo com os desafios específicos das organizações perante seu público, e não para dar conhecimentos gerais.

Criar incentivos mais eficazes para motivação individual e coletiva também devem significar alterações na gestão de pessoas e mesmo no direito administrativo. Mais medidas nessa linha poderiam ser citadas aqui, cujo resumo estaria na proposta de fazer com que a burocracia seja mais adaptável à busca dos resultados pretendidos e avaliados constantemente. Isso vai pressupor a valorização do funcionalismo e de sua crucial função social, mas também demandará combater vários corporativismos que imperam no Brasil.

Inovações organizacionais precisam ganhar um espaço maior na lógica da administração pública brasileira, buscando soluções mais customizadas aos problemas. Além disso, muitos dilemas coletivos são, na verdade, intersetoriais, de modo que só a atuação conjunta de órgãos ou políticas resolve tais questões. Novamente, isso vai exigir mudanças no direito administrativo, mas também na cultura dominante no Estado brasileiro, na qual cada setor (ou mesmo burocrata) se vê - e quer atuar - como uma "caixinha" perante o todo. A coordenação do aparato estatal é uma das grandes dificuldades em todos os governos do país.

A adoção de instrumentos de monitoramento e avaliação por indicadores deve se expandir ainda mais para todo o aparato estatal brasileiro, aperfeiçoando os mecanismos já existentes. Ter melhores termômetros é fundamental para dar maior qualidade às políticas públicas. Entretanto, a gestão por resultados não se traduz, na experiência internacional consagrada, numa mera forma de controle e punição ou premiação. Não basta dizer que uma escola ou município foi mal no IDEB: a gestão por resultados tem de propor os instrumentos educacionais para alterar esse quadro.

A reforma da gestão pública, por fim, deve continuar sua tarefa de aprimorar a democratização do Estado brasileiro. Isso passa pela reformulação da forma de seleção e cobrança dos altos quadros governamentais - a peça-chave da crise atual do presidencialismo de coalizão. Tão importante quanto é aumentar a transparência e a "accountability" governamentais, pela via da sociedade ou de órgãos fiscalizadores. Só que o custo do controle não pode ser maior do que o seu benefício, medido pela qualidade das políticas públicas ofertadas à população, sobretudo aos mais carentes de direitos. Deixo essa provocação ao fim para mostrar que para pensar sistêmica e estrategicamente a reforma da gestão pública será necessário ir além - embora não aquém - da lógica da operação Lava-Jato. Afinal, a corrupção nasce da falta de efetividade do Estado, e não apenas de sujeitos mal-intencionados.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,

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