domingo, 10 de julho de 2016

Por que tão tarde? - Fernando Gabeira

- O Globo

Cunha renunciou. Ainda estou devendo a mim mesmo uma explicação de como foi possível a trajetória e a resiliência de Cunha na democracia brasileira. É um pouco cedo para isso. Cunha oferece um anel para não perder os dedos. Todos sabem em Brasília que ele renunciou à presidência na esperança de manter o mandato e escapar de Curitiba.

O momento em que suas lágrimas me pareceram mais convincentes foi quando mencionou mulher e filha. Também foram envolvidas e, certamente, muito criticadas na imprensa e nas redes sociais. As lágrimas são enigmáticas. Seu último esforço é, precisamente, escapar do destino delas: ser julgado em Curitiba.


Como se as duas fossem jogadas ao mar, e ele se amarrasse no mastro do foro privilegiado. Cunha ouviu cantos da sereia. E os cantos, que ecoaram até no Palácio do Planalto, entoam promessa de manter o mandato. Ulisses, o herói grego, era previdente. Cunha é apenas um cabeça dura.

Vai perder o mandato e iniciar uma segunda negociação, desta vez com a própria Lava-Jato. De novo vai pedir muito e oferecer pouco.

Acontece que, na cadeia, petições e recursos tão abundantes na Câmara são mais um passatempo: um papel almaço e uma caneta bic, você passa o dia escrevendo.

A tendência de Cunha é negociar sua delação também no universo político. É um mecanismo muito complexo. A delação da Odebrecht, por exemplo, ainda não saiu. E, segundo as notícias, demorou por causa de uma tendência seletiva: salvar alguns, queimar outros.

Uma parte dos políticos, e talvez da própria imprensa, admirava a inteligência de Cunha. Um exemplo dela era sua capacidade de postergar, através de mil expedientes, o processo contra ele. Mas isso é uma tática inteligente apenas num momento de miopia política. Cunha estava apenas tornando sua situação mais grave, inclusive atrasando o próprio ritmo.

Quanto mais insistia na tecla, mais estreitava o caminho. Ele é réu no Supremo Tribunal Federal. A Petrobras quer se associar à acusação contra ele. O órgão supremo da Justiça e a maior empresa do Brasil na mesma ação contra ele. E ele, com um pequeno grupo fisiológico na Câmara, desafiando tudo, inclusive evidências: contas na Suíça, viagens milionárias, as inúmeras delações que revelam uma tática agressiva e um apetite voraz no submundo da propina.

Diante de tudo isso, chora ao microfone e diz estar sendo vítima de uma perseguição. Ele quer que você acredite que está sendo derrubado porque a Câmara derrubou a Dilma. Cunha teve um papel institucional no impeachment, comandou o processo na Câmara. Ele acredita que isso possa atenuar sua biografia. Mas teremos em conta que Cunha foi um grande constrangimento para milhões de pessoas que apoiavam o impeachment. Elas só o aceitavam por falta de alternativa.

Cunha na verdade ofereceu um imenso flanco para que o processo fosse visto no exterior como algo realizado apenas por políticos corruptos. O PT associou o impeachment a Cunha exatamente por saber de sua rejeição. A própria sessão que derrubou Dilma acabou sendo desses programas de TV que terminam como uma chamada do anúncio do próximo programa: Eduardo Cunha.

Não deu outra. No fundo, todos sabíamos que ele cairia, mais cedo ou mais tarde. Minha questão é esta: por que tão tarde? Diante de todas as evidências contra ele, a suposta inteligente estratégia de Eduardo Cunha não teria sido apenas um surto, uma alucinação. Corrupção à parte, a trajetória de Eduardo Cunha mostra como a democracia pode ser vulnerável contra alguém que usa suas regras como um escudo. Qual o momento certo de acabar com a farsa?

O Congresso ainda não o puniu, o Supremo apenas o afastou do cargo. Na semana que vem, possivelmente, estará de novo chorando, se a Câmara julgar seu caso.

Quando Cunha estiver fazendo suas petições com caneta bic, já não haverá peripécias. E poderei amadurecer uma dúvida. Sua trajetória, agora fracassada, demove aventureiros mafiosos ou os atrai para o campo da política?

Isso tem a ver com as condições gerais da degradação da política no Brasil e a fragilidade das leis contra a corrupção. O governo retirou a urgência de três projetos contra a corrupção. Diante de tudo que está se passando, Temer não consegue ver a urgência?

Trabalhando no interior ouvi uma notícia sobre a operação da PF chamada Abismo. Perguntei: depois do abismo virá o quê? Veio a Operação Pripyat, uma cidade ucraniana vizinha de Chernobyl, devastada pelo desastre nuclear.

Já estamos no pós-desastre nuclear. O processo de corrupção foi devastador e extenso. Para dizer a verdade, perdemos um grande tempo com Eduardo Cunha. O ideal seria perder com ele uma certa ingenuidade democrática, o alvo preferido dos mafiosos aventureiros de todos os matizes.

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