quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A nota de R$ 100 - Maria Cristina Fernandes

• PMDB não troca a perspectiva de reeleição pelo ajuste

- Valor Econômico

Servidora de um governo tucano, ex-diretora do Itaú e apoiadora de primeira hora do impeachment, a secretária de Fazenda de Goiás teve suas convicções anticorrupção postas à prova pela intransigente defesa das condicionalidades no projeto que renegocia as dívidas dos Estados. Ativa usuária de redes sociais, Ana Carla Abrão não para de responder a críticas que relacionam sua colaboração ao projeto de lei em tramitação na Câmara à tentativa de desaparelhar carreiras de Estado que lideram o combate à corrupção.

O Judiciário liderou o movimento que se estendeu aos servidores dos demais Poderes e desfigurou o ajuste nas contas estaduais. A guerrilha de seus servidores colocou a blindagem de seu funcionalismo como fiadora da Lava-jato, mas o único elo entre o combate à corrupção e a manutenção do auxílio moradia é a imoralidade de um país de 11 milhões de desempregados custear os privilégios de minorias organizadas.


A resistência da casta dos servidores a contribuir com o esforço para tirar o país do pântano fiscal só é comparável àquela que será oferecida pela elite da política nacional com assento no Congresso às 10 medidas de combate à corrupção que deram início à sua tramitação. O projeto patrocinado pelo ministério público corre o risco de sair tão desfigurado quanto aqueles do ajuste fiscal.

O sucesso dos lobbies que lotaram Brasília no início desta semana são um aperitivo do que aguarda a tramitação da PEC dos gastos e da reforma da Previdência. O otimismo do Ministério da Fazenda com o futuro do ajuste fiscal só pode ser explicado pelo desinteresse do titular em não explicitar as goleadas que tem tomado do Congresso e do governo parlamentar que se assentou no país. O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, José Robalinho Cavalcanti desaprova a guerrilha da categoria, mas indica o berço da arenga: "Se não havia dinheiro para nada porque passaram um déficit de R$ 170 bilhões?".

Ao assumir a Secretaria de Fazenda de Goias em janeiro do ano passado, Ana Carla Abrão fez um ofício para todos os Poderes pedindo que se esclarecessem os repasses devidos à folha e aos penduricalhos. Sem resposta até hoje, repassa todos os meses os duodécimos sem conseguir diferenciar um e outro.

Quando o ano termina é que as prestações de contas a permitem saber que o Estado, a despeito de cumprir os 60% da receita corrente líquida destinados à folha, gasta outros 16% com penduricalhos de servidores e terceirizados. De um acesso de franqueza do colega de um dos mais ricos estados da federação, bonito por natureza, colheu que a soma por lá chega a 110%. Talvez seja esta a razão de o senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES) sustentar que o governo Michel Temer arrisca-se a transformar o Brasil num grande Rio de Janeiro.

Como a Temer não interessa que se torne clara a fragilidade da política fiscal, alguma aparência de ajuste há de ser exibida. O saldo pode ser uma renegociação das dívidas estaduais que dê transparência às despesas e uma proposta de emenda constitucional que limite seu aumento à inflação. Essas despesas terão sido 'congeladas' na alta dos reajustes recentemente concedidos. Em clima de interinidade do presidente Michel Temer, é o que se avalia como possível. Parece pouco. E é.

Ferraço vê a complacência perto do fim num país que, sem tapar o buraco fiscal, gasta com juro o dobro de sua folha de pessoal. Identifica as imagens de um velho filme, que dá à política cambial uma responsabilidade extra no combate à inflação. A radicalidade do senador tucano contrasta com a moderação do novo presidente da Câmara. O deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), já amenizou o discurso do Estado mínimo. Lança mão da constituição federativa do país para se mostrar solidário às dificuldades do Executivo em se impor sobre os Poderes Legislativo e Judiciário nos Estados.

A zanga do DEM com o PSDB está atravessada na garganta do partido desde que Ruth Cardoso explicitou seu dissabor com os aliados que seu marido arrumou para governar, mas o presidente da Câmara passou a semana tendo que se explicar que esta afinação com o interino da República ainda não o transformou em cabo eleitoral de sua reeleição.

Ao sugerir que já tem lado na disputa, o DEM não ajuda na pacificação de um Congresso premido pelo ajuste fiscal, mas explicita as pretensões presidenciais que proliferam na Esplanada e planta a cizânia no núcleo de apoio a Temer. O que está em jogo é a proeminência na aliança que mandará no país, sem condicionalidades, a partir do impeachment. O DEM se posicionou de maneira privilegiada nesta aliança com a eleição de Maia, mas só fica na cadeira até fevereiro de 2017, quando o PSDB espera sucedê-lo. Ou não.

Se o ajuste fiscal é a única nota que o mercado reconhece nesta sinfonia, as disputas eleitorais - a de 2018 e aquela de outubro, que lhe serve de pedágio - são o único acorde que, de fato, sacode o Congresso. O ajuste só entra no discurso como aval para a conquista do poder, como foi na natimorta "Ponte para o futuro", com a qual o PMDB chegou a convencer incautos de que havia se convertido à reforma do Estado. Como o partido não tem vocação suicida, quatro meses depois do lançamento da ponte, na boca da votação do impeachment na Câmara, um dos seus principais defensores, Romero Jucá (PMDB-RR), arrancou do Senado a transferência, para o cabide da União, da folha dos servidores públicos do seu Estado e do Amapá. A conta de quase R$ 3 bilhões anuais é uma bagatela para um partido para o qual o futuro sempre é aqui e agora.

O domínio de Jucá, eterno relator do Orçamento, sobre a matéria selou uma ascendência sobre seu partido que rivaliza com a do presidente interino, dirá com o ministro da Fazenda. Com lábia e técnica, levou muitos a acreditar que o PMDB fundaria um governo de transição para ajustar o país.

Um ex-ministro, legendário conhecedor dos escaninhos do poder, a pretexto de definir o PMDB, conta a história de um conterrâneo que perdeu uma nota de R$ 100 durante uma festa. Parou a música e anunciou que daria R$ 50 para quem a devolvesse. Nesse momento, um matuto reparou que a nota estava debaixo de seu sapato. Sem alarde, agachou-se, agarrou o dinheiro e guardou-o no bolso. "Besta é quem troca uma nota de R$ 100 por outra de R$ 50", pensou. E quem troca a perspectiva de reeleição de Temer pelo ajuste fiscal.

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