segunda-feira, 8 de agosto de 2016

As raízes democráticas de Sérgio Buarque - Fernando Henrique Cardoso

- Folha de S. Paulo / Ilustríssima

Bem-vinda a edição crítica de "Raízes do Brasil", o pequeno grande livro de Sérgio Buarque, lançada pela Companhia das Letras sob o olhar atento de Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro. Fazia falta uma revisão editorial cuidadosa do livro que mostrasse as eventuais discrepâncias entre a edição "princeps", de 1936, a edição de 1948, corrigida e expandida pelo próprio autor, e as outras edições. A nova publicação é impecável.

Desde o lançamento, esse livro provoca debates. Anos depois da edição original, Antonio Candido, em texto famoso, considerou que o livro "já nasceu clássico". Mais recentemente, em cuidadoso e interessante estudo de Luiz Feldman, o epíteto é corrigido para dizer, como está sintetizado no título do ensaio, que o livro tornou-se "Um Clássico por Amadurecimento".

As modificações da versão original feitas pelo autor expurgaram palavras e mesmo apreciações mais amplas, que poderiam tê-lo filiado mais próximo das correntes autoritárias vigentes nos anos 1930. Sem, nem de longe, supor que o autor estivesse mascarando pensamentos, Feldman mostra como a imposição autoritária de regras poderia, eventualmente, ter sido uma alternativa para se contrapor às tendências "cordiais", quer dizer, às preferências afetivas que sufocam a impessoalidade da lei, condição para a democracia.


Na pequena síntese que fiz das ideias contidas em "Raízes do Brasil" para reafirmá-lo como um "clássico" de nossa literatura, em "Pensadores que Inventaram o Brasil", sequer entro nesse tema. Interessava ressaltar a marca que ficou em mim, a de um Sérgio Buarque que se distinguiu de tantos autores que justificaram o autoritarismo, na prática como nos livros.

Basta referir a Oliveira Viana ou a Almir de Andrade, este último tão bem analisado por Feldman. Na verdade, a "revolução" suposta pela urbanização e pela industrialização, na qual Sérgio Buarque apostou, amalgamava os "ímpetos culturais" e as condições de vida.

Talvez a passagem mais característica desse processo pudesse ser sintetizada pela expressão do próprio autor: "A realização completa de uma sociedade também depende de sua forma". O "homem cordial", embora típico idealmente, à la Weber, se contrapusesse, com seu iberismo, ao "americanismo" ("leia-se, ao espírito do capitalismo"), não o impediria; talvez o distinguisse de outras formas de capitalismo, atenuando-o, no bom e no mau sentido.

Transcorridas tantas décadas, vivendo o Brasil de hoje com maior presença do "americanismo", acaso o personalismo caudilhesco e o nepotismo despareceram de nossa cultura? Ao mesmo tempo, não terá sido a força transformadora da urbanização e do crescimento econômico que, se não levou nossa política ao liberalismo nem à plena aceitação da "democracia representativa" (ambas criticadas pela esquerda nos anos 1930 como agora), tampouco afirmou o autoritarismo como forma preferencial de governo? E não é em nome da mesma "democracia substantiva", movida a emoção, que até hoje alguns continuam a justificar os desvios do "lulismo"?

Certamente a defesa das oligarquias autocráticas nunca foi afim com o pensamento nem com o sentimento de Sérgio Buarque e tampouco a aceitação acrítica da prevalência da substância sobre a forma, como se uma pudesse ser apartada da outra.

O Sérgio que ficou perene, na vida intelectual como na memória dos que foram seus amigos e contemporâneos, é muito simplesmente o Sérgio de 1948, o mesmo que gostava da vida cheia de "cordialidade" (dos aniversários acolhedores, mormente quando entrava na sala alguma moça bonita acompanhando seus filhos) e que em gesto de solidariedade a mim e a tantos outros colegas seus expulsos da universidade pelo regime de 64 (Florestan Fernandes e Mario Schenberg, para dar dois nomes) pediu aposentadoria da USP. Continuou acreditando não no "americanismo" sem cor, ou trajando apenas as formas do liberalismo, mas naquele que deu aos ideais tradicionais da nossa cultura a possibilidade de abrigar valores socialmente democráticos.
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Fernando Henrique Cardoso, 85, sociólogo, é ex-presidente da República, presidente de honra do PSDB e autor de "Diários da Presidência" (Companhia das Letras).

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