sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Cinema: A sombra de ‘Macbeth’ projeta-se em ‘Francofonia’, o Louvre ocupado de Sokurov

Luiz Carlos Merten - O Estado de S. Paulo

Há uma floresta que anda em Francofonia, o novo Alexander Sokurov, que está estreando nesta quinta, 18, nos cinemas brasileiros. E há um Napoleão que circula pelo Louvre procurando os quadros com os quais se identificar. Diante da Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, ele exclama – “C’est moi!”, sou eu. A frase é famosa e atribuída a Gustave Flaubert, falando de sua heroína, Emma Bovary. Não é uma simples ‘boutade’ (piada) de Sokurov. Aqui mesmo em São Paulo, quando veio convidado pela Mostra – era um dos autores que Leon Cakoff colocava em seu panteão particular –, o diretor russo já dissera não ter muito apreço pelo cinema, mas que era seu destino – sua maldição – trabalhar nessa mídia. Como outra ‘boutade’, ou provocação, Sokurov disse que preferia a literatura. E foi direto ao ponto – “Todo cinema cabe em Madame Bovary.”

Já se passaram 14 anos desde que Sokurov fez Arca Russa. Dois anos antes, Cannes celebrara as novas tecnologias, premiando, com a Palma de Ouro, Dançando no Escuro. A Arca de Sokurov provavelmente não teria visto o dia sem o digital, que permitiu ao cineasta visitar o Hermitage, museu de São Petersburgo, ex-Leningrado, num único plano de 99 minutos.


O museu interessa ao cineasta como espaço da cultura e da memória – um espaço vivo. Depois do Hermitage, ele visita agora o Louvre, sob a Ocupação (nazista). Foi o subtítulo que o filme recebeu – no original, é só Francofonia. Alguns críticos já observaram que o título se liga muito mais a ‘cacofonia’ e ‘sinfonia’.

Falam-se outras línguas que não o francês no filme, mas o espaço é o Louvre. Ali dentro, Sokurov planejou e executou três encontros. O comandante de um navio e ele próprio, numa videoconferência; o encontro de Napoleão e de Marianne, representação da democracia; e o terceiro, o confronto entre Jacques Jaujard e o conde Wolff-Metternich.

Jaujard dirigia o Louvre na época da guerra – a 2.ª – e Metternich era o encarregado de Adolf Hitler para executar o ‘Kunstschutz’, programa de proteção do patrimônio dos países inimigos. O ‘proteção’ tem de ser colocado entre aspas, porque o programa, na realidade, visava a expropriar os países inimigos – ocupados – de seu patrimônio artístico e cultural.

É um diálogo, ou dois monólogos, fortes, os de Jasujard e Metternich, muito mais que os de Marianne e Napoleão. Ele percorre o Louvre com suas palavras de ordem – ‘Liberdade! Igualdade! Fraternidade”. Mas Sokurov não se ilude. O navio conduz um contêiner cheio de obras de arte que partiu do porto de Bassora. Não há de ser mera coincidência, pois foi em Bassora que o Estado Islâmico destruiu obras que pertencem ao patrimônio da humanidade. O navio enfrenta tempestades – metáfora das dificuldades que a arte e os artistas experimentaram ao longo da história. Sobre o Louvre, avança uma floresta – criada digitalmente –, e desta vez a ‘tempestade’ é emprestada de Shakespeare, Macbeth.

Só para se lembrar, a floresta já se moveu recentemente no espetáculo – videoinstalação – de Christiane Jatahy, também baseada (livremente) em Macbeth. E também recentemente, em Diplomacia, baseado na peça de Cyril Gely, Volker Schlondorff recriou outro encontro, o do cônsul-geral da Suécia, Raoul Nordling, com o oficial alemão a quem Hitler outorgou a governadoria da Paris ocupada, Dietrich Von Choltitz. Conta a lenda que o ‘führer’, enfurecido – e sentindo próxima a derrota –, telefonou a Von Choltitz para fazer a pergunta fatal – “Paris está em chamas?”

O esforço diplomático e humanista de Nordling foi para evitar que isso ocorresse. O de Jaujard é impedir a pilhagem do Louvre por Metternich, a mando do ‘führer’, quando ficou claro que o Reich não viveria os mil anos que Adolf sonhou.

Francofonia não se assemelha a nenhum outro filme que o público tenha visto – não importa se há pouco, ou não. Por certa afinidade de tema, pode-se citar (de novo) Diplomacia, ou então Caçadores de Obras-Primas, em que o ator e diretor George Clooney adotou a solução hollywoodiana – o Exército dos EUA e os astros do cinemão (o próprio Clooney, Matt Damon, etc.) salvaram o patrimônio artístico da humanidade das garras dos nazistas.

Essa facilidade é tudo que não interessa a Sokurov. É um grande cineasta – um artista –, mas não é sempre que se pode viajar nas imagens e sons que ele gosta de criar. A trilogia formada por Moloch, Taurus e O Sol, sobre Hitler, Stalin e o imperador do Japão, é excepcional, e idem, Alexandra, cuja forma está mais próxima de Arca Russa e Francofonia. É uma elegia, sobre essa avó que atravessa a guerra na Chechênia para encontrar o neto.

Arca Russa é impressionante, como tour de force técnico e estético, mas fazer o filme num único plano, eliminando a montagem, não deixa de carregar certo ‘reacionarismo’ – por mais polêmica que seja a palavra –, ao colocar o cinema na contramão de um compatriota de Sokurov, Sergei M. Eisenstein, que elaborou toda uma teoria da montagem a serviço da revolução. Em defesa de Sokurov, pode-se dizer que, se ele sempre foi crítico do comunismo, o é também de Vladimir Putin, o sinistro czar da Rússia capitalista.

A crítica a esse último atravessa Fausto, que ele adaptou de Goethe – e é preciso um crítico do porte de Otto Maria Carpeaux para nos lembrar que Goethe, em seu tempo, foi considerado reacionário, e pelo Fausto. A elegia de Francofonia é mais bela e pungente que a de Arca Russa. E a riqueza do filme é total, na multiplicidade de sua mise-en-scène. Tableaux vivants, montagens de documentos de época, cinedramaturgia. O novo Sokurov, mais que qualquer filme anterior do autor, é um monumento. Como o Louvre, que o inspirou.

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