sábado, 6 de agosto de 2016

Daqui pra frente - Ana Maria Machado

• Ficamos livres de Cunha e Maranhão na presidência da Câmara — e talvez em breve nos livremos de Cunha no Congresso

- O Globo

Não é apenas a Olimpíada que está começando. Outros jogos, talvez não tão límpidos e festivos, se abrem também diante de nós neste momento. Pode ser que não dê para celebrar, com a canção de Roberto Carlos, que daqui pra frente tudo vai ser diferente e vamos aprender a ser gente. Mas algo muda, e já não é sem tempo.

Chegam ao fim os recessos do Legislativo e do Judiciário. As coisas podem começar a andar.

Ficamos livres de Eduardo Cunha e de Waldir Maranhão na presidência da Câmara — e talvez em breve nos livremos de Cunha no próprio Congresso. Além disso, a interinidade no Executivo vai também ser resolvida, com a votação final do impeachment de Dilma, já que se acaba o processo de adiamento permanente a que a nação está submetida, e o ministro Lewandowski deixa a presidência do STF em setembro.

Por outro lado, o novo presidente da Câmara se dispõe a arrumar a casa, tão precisada de uma faxina em regra nas bases da situação política. Minimamente que seja, há sinais de que pode haver alguma melhora, por meio de mudanças que o próprio Congresso deveria tentar fazer, em nome do amor à nação. Ao lado de medidas econômicas inadiáveis, que Rodrigo Maia tem mostrado a intenção de pôr em discussão — como o teto dos gastos públicos, uma reforma na Previdência Social, e projetos relacionados ao pré-sal — há indícios nítidos de que setores parlamentares percebem a urgência com que a opinião pública exige uma reforma política, que não dá mais para continuar postergando indefinidamente, e buscam dar uma contribuição racional a esse debate.

O senador Ricardo Ferraço busca apoios preciosos no sentido de que se forme um certo consenso em torno a seu projeto de emenda constitucional para uma reforma da legislação eleitoral, capaz de acabar com as coligações proporcionais (tão nefastas à democracia representativa quando elegem quem teve menos votos do que os derrotados), bem como de limitar o número de partidos por meio de uma cláusula de desempenho. Talvez ao mesmo tempo se propicie a possibilidade de uma cláusula de votação em bloco no Congresso, evitando o balcão de trocas e o toma lá dá cá fisiológico que se associou à venda de votos parlamentares. Quem sabe não se consegue até acabar com essa prática de alguém ser suplente de senador sem ter voto?

Também entraremos na fase das campanhas municipais. Este ano, para uma eleição diferente. Ainda que calcadas em um escandaloso aumento do Fundo Partidário, que foi triplicado pela presidente Dilma, as campanhas terão dificuldade em manter os níveis milionários a que se acostumaram nos últimos anos, na medida em que as doações empresariais estão suspensas. E também se faz sentir o efeito pedagógico da descoberta e punição de práticas de corrupção que alicerçavam essa intimidade incestuosa entre políticos e empresários. Mais baratas, as campanhas podem exibir menos truques, efeitos visuais, atores e cenas externas. Podem até incentivar algum debate de temas substantivos e discussão de propostas.

Temos de reconhecer que, às vezes, é difícil este nosso “corpo a corpo com a esperança” (na bela expressão de Eduardo Gianetti). Ainda agora, quando mais de dois milhões de eleitores se mobilizaram e enviaram ao Congresso a proposta de uma legislação anticorrupção de iniciativa popular, encabeçada por projetos do Ministério Público, logo alguns setores do Senado, a pretexto de combater abuso de autoridade, se mexeram para tentar paralisar juizes, procuradores e policiais, e intimidar magistrados, conforme alerta em nota a Associação dos Magistrados Brasileiros. A mesma entidade repudia também a petição encaminhada por Lula à ONU denunciando a operação Lava-Jato por perseguição contra ele. Mais uma tentativa de escapar à Justiça, como na jogada de ser nomeado por Dilma para a Casa Civil, de modo a ter foro privilegiado. Busca de imunidade como garantia de impunidade. Virou réu por manobras desse tipo.

Por que existe foro privilegiado? Para garantir a liberdade de expressão dos representantes do povo. Deveria ser apenas para que deputados e senadores pudessem falar livremente sem que um Executivo forte os castigasse. Durante o governo militar, foram inúmeras as cassações de mandatos de parlamentares que ousaram denunciar torturas ou prisões arbitrárias, ou simplesmente criticar os governantes. Ficou famoso o caso do deputado Márcio Moreira Alves, que num discurso da tribuna da Câmara sugeriu que as moças não dançassem nos bailes com oficiais fardados, já que o Exército não estava mais à altura de suas tradições. O governo decidiu puni-lo e, como a Câmara não permitiu, veio o AI-5: o Congresso foi fechado, a censura foi imposta, a ditadura se instalou.

Num estado democrático de direito, foro privilegiado não se justifica mais. Pode, no máximo, proteger a opinião expressa por parlamentares na tribuna. É hora de discutir também essa questão.

Isso tudo é só o começo. Dá trabalho, para que daqui pra frente tudo possa ser diferente.

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Ana Maria Machado é escritora

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