terça-feira, 9 de agosto de 2016

‘Hiroshima mon amour’ - Arnaldo Jabor

- O Globo

Você está andando pela rua e, de repente, uma imensa tempestade de luz cai sobre sua cabeça, como o sol despencando do céu. Você não sabe o que é, nem vai saber nunca porque você derreteu como um sorvete em dois segundos. Fica um lago de seu corpo em volta de seus sapatos, enquanto a cidade inteira vira um deserto fervente povoado por cadáveres que vagam como zumbis pelas ruas em fogo.

Falo assim para ver se sentimos no corpo o intenso horror do “segundo Holocausto” da guerra: as bombas atômicas no Japão.

Há 71 anos, em 6 e 9 de agosto de 1945, os americanos destruíram Hiroshima e Nagasaki.

Todo ano me repito e escrevo praticamente o mesmo artigo sobre a bomba nessa data, não apenas para condenar um dos maiores crimes da Humanidade, mas para lembrar que o impensável pode acontecer a qualquer momento. Tudo pode acontecer hoje num mundo onde um psicótico como o Trump, um Hitlerzinho repulsivo, pode ser candidato a presidente dos US. Isso não podia acontecer e, no entanto, acontece.

A destruição de Hiroshima e Nagasaki, três dias depois, inaugurou a “guerra preventiva” de hoje. O Holocausto dos judeus na Segunda Guerra fecha o século XX, ainda no contexto de contradições do século XIX; o espetáculo luminoso de Hiroshima marca o início da guerra do século XXI.

O horror se moderniza, mas não acaba. Vi outro dia o filme de Alain Resnais “Hiroshima meu amor” — é insuportável ver as cenas documentais do bombardeio: não mais a morte por gás ou bala, mas por derretimento.

Auschwitz e Treblinka ainda eram “fornos” da Revolução Industrial, ainda eram massacres da era “fordista”, da linha de montagem do horror, mas Hiroshima inventou a guerra tecnológica, virtual, asséptica. A extinção em massa dos 200 mil japoneses no furacão de fogo fez em um minuto o trabalho de meses e meses do nazismo.

O que mais impressiona na destruição de Hiroshima é a morte “on delivery”, “de pronta entrega”, sem trens de gado humano, morte “clean”, anglo saxônica. A bomba americana foi considerada uma “vitória da ciência”. Na época, a bomba explodiu como um alívio, e a opinião pública ocidental celebrou tontamente. Nesses dias, longe da Ásia e Europa, só havia os papéis brancos caindo na Quinta Avenida, sobre os beijos de amor da vitória. Naquele contexto, não havia conceitos disponíveis para condenar esse crime hediondo. A época estava morta para palavras, na vala comum dos detritos humanistas.

Os nazistas matavam em nome do pavoroso ideal psicótico de “reformar” a Humanidade para o milênio ariano. Por outro lado, incrivelmente, as bombas americanas foram lançadas em nome da “razão”. A bomba A agiu como um detergente, um mata-baratas. A guerra como “limpeza”, o típico viés americano de tudo resolver, rápida e implacavelmente... A destruição de Hiroshima foi “desnecessária” militarmente. O Japão estava de joelhos, querendo preservar apenas o imperador e a monarquia. Diziam que Hitler estava perto de conseguir a bomba — o que é mentira.

Uma das razões reais era que o presidente Truman e os falcões da época queriam testar o brinquedo novo. Truman fala dele como um garoto: “Uau! É o mais fantástico aparelho de destruição jamais inventado! Uau! No teste, fez uma torre de aço de 60 metros virar um sorvete quente!...” Na luta pela democracia, rasparam da face da terra os “japorongas”, seres oblíquos que, como dizia Truman em seu diário: “São animais cruéis, obstinados, traidores”. Seres inferiores de olhinho puxado podiam ser fritos como shitakes.

O clima era alucinado e quase “lúdico”, um interessante teste de fogo. Basta lembrar que o avião que largou a bomba A em Hiroshima tinha o nome da mãe do piloto na fuselagem — “Enola Gay”. Isso. O bombardeiro B-29 que lançou a bomba em Hiroshima no dia 6 de agosto de 1945 foi pilotado pelo coronel Paul Tibbets Jr., que escolheu pessoalmente um quadrimotor B-29, batizando-o com o nome em homenagem à sua mãe. Esse gesto de carinho filial derreteu no fogo 200 mil pessoas. Essa foi a mãe de todas as bombas, parindo um feto do demônio.

Os americanos queriam vingar Pearl Harbour, pela surpresa de fogo, exatamente como o ataque japonês três anos antes. Queriam também intimidar a União Soviética, pois raiava no horizonte sombrio a Guerra Fria; além disso, é claro, os americanos queriam exibir para o mundo um show “maravilhoso” de som e luz, uma superprodução a cores do novo Império. O Holocausto sujou o nome da Alemanha, mas Hiroshima soa até hoje como uma vitória tecnológica “inevitável”.

Agora, não temos mais a Guerra Fria; ficamos com a guerra quente do deserto — a mais perigosa combinação: fanatismo religioso e poder atômico. Vivemos dois campos de batalha sem chão; de um lado a cruzada errada do Ocidente, apesar e além de Obama. Do outro lado, temos os homens-bomba multiplicados por mil. E eles amam a morte. E pior: com o rato do Putin, com o rato Kim da Coreia, com Paquistão, Índia, Israel volta o perigo atômico, 71 anos depois.

Hoje, já há uma máquina de guerra se programando sozinha e nos preparando para um confronto inevitável no Oriente Médio. Estamos num momento histórico onde já se ouvem os trovões de uma tempestade que virá. Os mecanismos de controle pela “razão”, sensatez, pelo “soft power” da diplomacia perdem a eficácia. Como dar conta da alucinação islâmica religiosa com amor à morte que quer impedir o “perigo da paz”?

Estamos às vésperas de uma bruta mudança histórica. Sente-se no ar o desejo inconsciente por tragédias que pareçam uma “revelação”. Surge a fome por algo que ponha fim ao “incontrolável”, a coisa que o Ocidente mais odeia. Mesmo uma catástrofe sangrenta parecerá uma “verdade” nova.

Vivemos hoje na era inaugurada por Hiroshima.

“There is a shit-storm coming” — disse Norman Mailer uma vez.

A caixa de Pandora (que Truman abriu em 45 e Bush reabriu 50 anos depois) nunca mais se fechará.

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