segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O preço do impeachment - Marcos Nobre

• O Grande Ajuste se reduziu ao aperto de um ou outro parafuso

- Valor Econômico

Quanto mais próximo e certo foi se tornando o cadafalso de Dilma Rousseff, tanto mais o Grande Ajuste de Temer foi se resumindo ao aperto de um ou outro parafuso. Ficou clara a diferença entre quem torceu pelo impeachment do Grande Ajuste e quem o executou. Em nome do resultado, a torcida abriu mão até mesmo do controle antidoping. E aí ficou sem poder reclamar de jogadores que não conseguem mostrar no governo o mesmo desempenho que tiveram quando se tratava apenas de derrubar o governo anterior.

Quem executou o impeachment queria obviamente se proteger da Lava-Jato. Mas também entrou em uma disputa de novo tipo, que tornou obsoletas regras e padrões de formação de governo observados nas últimas duas décadas. Nos governos liderados por PT e PSDB, o agora chamado Centrão sempre teve de se contentar com as migalhas que lhe eram jogadas pelo alto clero da política congressual. O alto clero controlava o financiamento e a distribuição de cargos e de verbas. Não apenas as cúpulas estimulavam a competição entre os de baixo, dividindo para reinar. Também detinham informações de conjunto, acesso direto a financiadores de campanha, uma visão mais ampla dos recursos de governo disponíveis, elementos inacessíveis aos integrantes do baixo clero congressual.


Eduardo Cunha deu um nó nesse arranjo. Utilizou a cada vez maior quantidade de informações de conjunto que acumulou não para dividir, mas para dar organicidade e coesão ao baixo clero. Atento aos inúmeros conflitos de interesse que sempre dividiram essa base informe, traçava estratégias eleitorais de tipo ganha-ganha para seus liderados. Contornou o bloqueio estrutural imposto pelo alto clero ao franquear acesso a um financiamento privado antes impensável para esses parlamentares. E o que era antes um amontoado informe de algo entre 170 e 220 deputados se tornou um amontoado relativamente organizado e coeso.

Mas logo após sua eleição para a presidência da Câmara, Cunha foi parar no centro da mira da Lava-Jato e, com o tempo, passou a ocupar a posição de inimigo público número 1. A fonte do financiamento empresarial de campanhas secou, tanto pela proibição legal como pelo efeito de pânico causado pela Lava-Jato. Foi aí que o baixo Centrão partiu para a disputa por uma redivisão radical das vacas magras do governo, tornadas sem preço em vista da penúria generalizada. Essa disputa dispôs o pano de fundo diante do qual se desenrolou o impeachment. A eleição de Cunha para a presidência da Câmara mostrou que o baixo clero já tinha organização suficiente para entrar em uma disputa como essa de maneira relativamente coesa. O impeachment representou a entrada sem cerimônia desse bloco, já promovido a Centrão, no palco central da política, com a exigência de ser tratado como ator principal e não mais como coadjuvante.

O impeachment afastou da liderança os dois polos que até ali tinham conseguido coordenar o conjunto do sistema, PT e PSDB. Esses dois polos conseguiram manter esse papel enquanto conseguiram sustentar as posições de domínio e controle do alto clero no Congresso. Quando se reduz a crise atual a uma crise do sistema político, quando se fala em crise do presidencialismo de coalizão, é disso na verdade que se está falando. Quando se fala em crise do sistema partidário, é disso que se está falando.

O novo pacto que veio com o impeachment instalou o baixo Centrão no coração do governo Temer. Para entender por que Temer está amarrado ao baixo Centrão de maneira inescapável, basta começar lembrando um número em particular: 171. É o número de votos necessário para impedir a abertura de um processo de impeachment. E, não por acaso, é o número de deputados que perfaz o núcleo duro do baixo Centrão, espelhado na votação obtida por Rogério Rosso no segundo turno da eleição para a presidência da Câmara.

O afastamento de Dilma Rousseff instaura nova jurisprudência. O impeachment passa a funcionar como uma espécie de recall indireto, sem consulta direta ao eleitorado. Suas únicas condições efetivas são uma conjunção de baixa popularidade e falta de apoio congressual. Daí que a preocupação número 1 de Temer seja evitar o mesmo destino de sua companheira de chapa presidencial. Afinal, o fundo do poço econômico deve estar perto, mas o social sabe-se lá quando será atingido. E Temer sabe que não conta com o apoio firme dos neogovernistas do PSDB, DEM e PPS. Como quase todos os outros partidos, também esses estão preocupados com a Lava-Jato. Mas estão ainda mais preocupados com 2018 e não com a sobrevivência do novo governo.

Dito isso, o que pode razoavelmente esperar a torcida que sonhou com o Grande Ajuste e deu de cara com um governo sustentado pelo baixo Centrão? Primeiro, rezar para a calmaria mundial continuar e para a chegada do fundo do poço econômico não se apartar demais da chegada do fundo de poço social. A proposta do teto de gastos vai valer para o próprio período Temer, evidentemente. Talvez poupando a área da saúde. Talvez avançando um ou dois anos no próximo mandato presidencial. Talvez. O real sacrifício que o governo solicitará ao baixo Centrão no ano de 2017 será aprovar alguma reforma da Previdência, ainda que minimalista.

No mais, o governo será mero espectador do cabo-de-guerra entre inflação e milagres arrecadatórios. Se os milagres vierem, a alta inflacionária será combatida. Do contrário, o que se verá uma vez mais é ajuste via inflação, provavelmente anabolizado por aumentos da carga tributária. Em um cenário como esse, o governo perderá certamente o presidente do Banco Central. E, provavelmente, também Henrique Meirelles.

A política determina hoje mais do que nunca a economia. Mas o cenário político mais otimista é o de que o governo Temer entregue o país às eleições gerais de 2018 em condições econômicas estruturais muito semelhantes àquelas em que o recebeu no afastamento de Dilma Rousseff. Se esse cenário se confirmar, pensando em termos estritamente econômicos, o preço do impeachment terá sido correr uma maratona para ficar no mesmo lugar.

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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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