sábado, 20 de agosto de 2016

Reunião da pior das tradições na América Latina - José Augusto Guilhon Albuquerque

• Neopopulismo levou países como a Venezuela, o Brasil ou a Argentina a um colapso econômico e político nunca antes visto

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Direita e esquerda são desses conceitos operacionais que quase todos sabem como usar, mas poucos definem com precisão. Alguns os tratam como uma dicotomia entre duas posições opostas e excludentes, mas a maioria os representam como um contínuo gradual entre extremos. A dificuldade provém do caráter relacional e operacional, de direita e esquerda, presente em sua origem: a posição tomada pelos diversos grupos no anfiteatro do parlamento francês durante a Revolução - embaixo à frente, no alto atrás, à direita e à esquerda.

Desse ponto de vista tópico, digamos assim, pessoas, ideias e movimentos não são de esquerda ou de direita, apenas estão mais à esquerda do que os que estão mais à sua direita, e vice-versa. Já do ponto de vista conteudístico, esquerda designa um conjunto único de ideias políticas, concepções do mundo e modos de ação que existem nelas mesmas e, portanto, distinguem-se radicalmente das demais ideias, concepções e movimentos, estes, por definição, de direita.


A dificuldade com essa concepção, por assim dizer ontológica, de uma esquerda cuja essência é imutável e eterna, tanto nas ideias como nos movimentos, é que ela ignora o papel da história. As ideias originais de esquerda, que se consolidaram na social-democracia e, posteriormente, no comunismo, partiam da primazia da desigualdade (ou dominação, como queira) econômica, que se refletia na desigualdade política, que, por sua vez, refletia-se na dicotomia entre ideias. Daí a rejeição, pela esquerda, das ideias, pleitos e ações divergentes, portanto devendo ser tratadas como irrelevâncias, desvios ou até traições da classe revolucionária e, consequentemente, da pátria, merecedoras de censura, repressão ou simplesmente extinção.

Desde sua fundação por Karl Marx (1818- 1883), entre outros, o adversário principal da social-democracia alemã eram as ideias, reivindicações e iniciativas liberais, cuja legitimidade foi duramente recusada e cujos porta-vozes nos movimentos de esquerda foram silenciados. Estamos falando dos direitos individuais perante o Estado, dos direitos fundamentais de igualdade política, liberdade individual de pensamento e de credo, de acesso à proteção da Justiça, de liberdade de expressão e de ação política para a oposição e de proteção às minorias de todos os tipos: de gênero, de cor, de etnia, de vulnerabilidade econômica e social.

Hoje essas bandeiras aparecem como conquistas da esquerda. Bravos para a esquerda, se ela aprendeu com a história e encampou as boas e justas ideias de admitir a liberdade como finalidade última da sociedade política, ao mesmo título que a igualdade econômica. O processo de incorporação de ideias antagônicas, entretanto, é tudo menos simples.

Complexo ou não, é árduo e lento o processo que vem ocorrendo ao longo da história conjunta do capitalismo e do movimento operário, cujo antagonismo esteve no âmago da história moderna, sem, no entanto, tolher seu progresso. Progresso que exigiu aceitar a legitimidade das ideias divergentes, fazer concessões mútuas e literalmente coabitar no poder.

Nem sempre, entretanto, o processo seguiu essa trilha da compatibilização entre antagonismos, como ocorreu no Reino Unido, sob o comando do Labour e parcialmente na França, sob o comando dos socialistas. Na América Latina, particularmente - e esse é o caso do Brasil -, em vez de caminhar na direção da incorporação mútua de ideias e valores, a esquerda recorreu a um amálgama entre o conteudismo a-histórico e a expressão das reivindicações liberais, mas destituídas de seu fundamento conceitual.

O resultado tem sido o de conceder espaço de iniciativa para o que chamam de "sociedade organizada", sem reconhecer seu direito à liberdade. Com isso, multiplicam-se os "direitos", traduzidos em prerrogativas corporativas outorgadas a grupos de ativistas, sob a forma de subsídios, concessões, cotas, leniência diante do descumprimento da lei e tudo o que se considera o "legado social" do lulopetismo.

O resultado desse amálgama tem sido devastador para a esquerda latino-americana porque reúne não o que há de melhor, mas o que há de pior nas duas tradições, a inclinação da esquerda para o autoritarismo - para não falar de totalitarismo - e a inclinação para o individualismo extremo da visão liberal. Com isso, a "verdadeira" liberdade do direito à divergência, à diferenciação, à contestação, à opinião, à privacidade, tornou-se justificativa para privar os demais de qualquer direito. O que mais pode explicar o "direito" de um punhado de pessoas para paralisar o sistema de transporte ou destruir equipamentos públicos, como forma de expressar sua insatisfação com o que quer que seja?

Outro desafio dramático para a esquerda, tanto quanto para a direita, é o neopopulismo, ao qual a esquerda se entregou de braços abertos, levando países como a Venezuela, o Brasil ou a Argentina a um colapso econômico e político nunca antes visto e, a direita europeia, a namorar com as formas correntes de fascismo.

Resta saber se é possível compatibilizar os ideais de igualdade com o direito à liberdade, o desafio eterno da política moderna.
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José Augusto Guilhon Albuquerque é professor titular de relações internacionais e ciência política da USP.

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