quinta-feira, 1 de setembro de 2016

A decisão falível - Maria Cristina Fernandes

• Renan cativou todos aqueles que buscam se preservar do coice

- Valor Econômico

Não poderia ter sido outro o autor do discurso que melhor resumiu o processo encerrado ontem. Renan Calheiros (PMDB-AL) saiu da condição de principal pilar do governo Dilma Rousseff no Senado para se manter no mesmo lugar na gestão Michel Temer com um discurso capaz de louvar a dubiedade como virtude democrática.

A democracia é o melhor regime porque, sob o comando do povo, corrige seus próprios erros. Foi assim que o senador anunciou oficialmente seu embarque na nova nau governista horas antes de integrar a comitiva do novo presidente à China.

Manteve à vista de todos o bote para onde poderá pular no momento em que a história fizer seu julgamento. Se tiver cometido um erro, não custará a se corrigir. E não hesitará a mudar de lado, como sempre fez. Ou melhor, Renan não muda de lado. É o lado que muda - "É esta a grandeza da democracia".


Para que não se lhe acuse de oportunismo, lá está a citação a Ulysses Guimarães, um dos últimos pemedebistas a abandonar Fernando Collor para liderar o impeachment: "É caminhando que se abre o caminho". É um discurso que o habilita à condição de principal esteio governista, mantém portas abertas à oposição e o conserva como ombro amigo para parlamentares que ficarem feridos no meio do caminho.

O presidente do Congresso endereçou-se ainda a uma quarta audiência, a do Supremo Tribunal Federal, onde repousam seus processos e de mais da metade daquele plenário. Todos os senadores, tanto os que já são réus quanto aqueles que podem vir a ser, elogiaram a condução do processo pelo presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski.

Ao louvar a condução do processo, Renan foi além. Como um jardineiro de vaidades, registrou o espaço reservado pela história ao ministro: "O que constrói o nome dos grandes comandantes são as tempestades". Além daquela que acabou de atravessar, Lewandowski tem pela frente as turbulências geradas pelo reajuste do Judiciário, do qual é um dos principais porta-vozes, além da maior delas, a Lava-Jato.

Face à conjuntura encrespada, Renan achou por bem anunciar que era chegada a hora da "pacificação e da concórdia". Um país desestabilizado pelo segundo impeachment em 24 anos carece de instituições aprimoradas. No dialeto que extrapola, em muito, o sertão de Alagoas, instituições aprimoradas pela pacificação e pela concórdia, têm como tradução a dosimetria da Lava-Jato, tanto pela distinção entre caixa dois e propina quanto pela anistia daqueles que trafegaram pela zona cinzenta entre as duas fronteiras.

Renan não pode ser acusado de atuar com disfarces na matéria. Foi ele quem puxou o coro das mudanças legislativas para oferecer um colchão à Lava-Jato a partir da discussão da lei que pune o abuso de autoridade. Se o processo de impeachment foi acolhido porque Dilma se recusou a proteger Eduardo Cunha, seus direitos políticos parecem ter sido preservados em nome de uma proteção que extrapola o deputado.

Foi no momento da altercação do presidente da Casa com a senadora Gleisi Hoffmann, quando, para todos os efeitos, parecia ter havido um espetacular rompimento, que dois senadores do PT o abordaram sobre a possibilidade de evitar a inabilitação da presidente cassada. Ao acolher a demanda petista, Renan não apenas manteve a ponte com o PT como deu substância ao discurso que, dali a dias, faria no plenário do Senado.

A Constituição é clara sobre a perda conjunta do cargo e dos direitos ao exercício de função pública, mas o presidente do Supremo acolheu a interpretação distinta de normas secundárias, como o regimento do Senado. A acolhida dada por Lewandowski ao destaque do PT liberou o presidente do Senado a uma inaudita e entusiasmada declaração de voto a partir da mesa. Além da queda, Dilma não merecia um coice.

Ao se pronunciar pela manutenção dos direitos políticos de Dilma, Renan deu consequência ao discurso de que a democracia será capaz de corrigir a rota se o impeachment se comprovar um erro. Brasileiros e brasileiras, não se trata de um golpe. Se, mais tarde, chegarmos à conclusão de que foi, vocês terão as urnas para reparar esta injustiça.

Além da permanência do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o cenário eleitoral ainda pode vir a contar com uma ex-presidente vitimizada. Na próxima campanha, a depender da extensão das perdas impostas à população pelas reformas que estão por vir, aqueles que perderem direitos podem vir a dividir assento no trem dos injustiçados com a presidente cassada.

O presidente do Senado monta um guarda-chuva suprapartidário sob o qual até mesmo o ex-presidente da Câmara pode se achar no direito de se abrigar. É natural que o PSDB estrebuche sobre a atração a ser exercida por Renan.

A manutenção dos direitos de Dilma foi providencial para a determinação com a qual o senador se move pela anistia. Seu discurso vai ficar para a história pela capacidade de abrigar, sob o manto da democracia, a exegese de uma geração cuja sobrevivência política está ameaçada.

No Senado, o processo de impeachment foi liderado por tucanos e petistas. Entre as grandes bancadas, PT e PSDB foram as únicas em que todos os parlamentares se inscreveram discursar. De um lado e do outro, no entanto, o que se viu, na definição de Renan, foram as "paixões do momento". A narrativa do senador que busca salvo-conduto para sua geração é a do diálogo com o "perene espírito do tempo".

O Senado será, para Temer, o que a Câmara foi para Dilma Rousseff. A diferença é que enquanto a presidente cassada nunca escondeu as pedras de seu sapato, o novo titular costuma retirá-las sem descalçar as meias.

A presença de aguerridas bancadas do PSDB e do PT fazem do Senado o último reduto da polarização, mas é, sobretudo, pela presença de Renan que o jogo será jogado naquela Casa. A partir de fevereiro, o senador Eunício Oliveira (PMDB-CE) será o novo presidente, mas não parece haver dúvidas de onde emanará o poder.

Na cerimônia de posse, parecia improvável que Renan desconhecesse o microfone aberto sobre sua própria mesa ao se dirigir ao presidente da República: "Tamo junto". Ainda é cedo para saber se os acontecimentos passarão à história como um golpe parlamentar, mas já é possível divisar o lugar de primeiro-ministro. E não é Henrique Meirelles que está nele.

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