terça-feira, 13 de setembro de 2016

A fábula do golpe - *Zander Navarro

- O Estado de S. Paulo

• Qual será o preço da farsa ora em curso, seja a artimanha do Senado ou o delírio golpista?

Em 1571 Michel Eyquem, conhecido como Montaigne, o nome das terras que herdou, decidiu dedicar-se à interpretação da natureza humana. Legou-nos um livro brilhante, Os Ensaios” (Companhia das Letras). Foi escolarizado primeiramente em latim e leu todos os clássicos do pensamento social. O volume deveria ser leitura compulsória para todos os que almejam desvendar os mistérios e significados da ação humana.

A versão definitiva e póstuma é de 1595 e nela Montaigne impôs a si próprio explicar por que “os que se empenham em examinar as ações humanas jamais ficam tão atrapalhados como para juntá-las sob a mesma luz, pois comumente elas se contradizem de modo tão estranho que parece impossível que venham da mesma matriz”. A inconstância humana foi um dos seus temas favoritos, pois “nosso modo habitual é seguir as inclinações de nosso desejo, para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, conforme nos leva o vento das ocasiões”. Em consequência, “não vamos, somos levados, como as coisas que flutuam, ora suavemente, ora com violência”.

Os episódios políticos recentes em nosso país, até chegar ao impeachment e ao inacreditável “fatiamento” da decisão final, nos remetem à sabedoria contida naquele livro de quase cinco séculos e à explicação que nos propõe acerca das escolhas humanas – “em quem se fiar para saber o que é louvável?”. Ou, então, será que “os que tentaram reformar os costumes do mundo por novas opiniões reformaram os vícios da aparência, (mas) os da essência os deixam lá” e, assim, o que no passado seria condenável passou a ser naturalizado, como temos observado regularmente em outros aspectos da vida social, segundo os “vícios de outrora, costumes de hoje”? Se a presidente foi apeada do poder, por seus malfeitos, mas pode seguir na vida pública, por que todos os demais em situação análoga não serão igualmente beneficiários de tamanha bizarrice? Que maquinações teriam sido urdidas, que os cidadãos, em sua inocência política, desconhecem? Como seria importante saber as reais razões que motivaram a estapafúrdia decisão, pois “é justo que se faça grande diferença entre os erros que vêm de nossa fraqueza e os que vêm de nossa maldade”, destacaria o filósofo seiscentista. Se houve má-fé e intenções inconfessadas, muito em breve a fatura será cobrada e nós, os brasileiros, vamos pagar a conta, como tem sido o costume.

Similarmente, a difundida fabulação de um suposto golpe atende aos mesmos indisfarçados interesses, seja de Dilma, a personagem principal da trama, ou, então, do campo petista diretamente atingido. É a estratégia ideal, que os anos vindouros comprovarão. Os petistas sabem, como alertou Montaigne, que “assim como o prato da balança pende necessariamente quando foi carregado, assim o espírito cede às coisas evidentes” e o uso repetido, ad nauseam, do incriminatório “golpista”, em todos os momentos e situações, acabará se enraizando no coletivo social e se tornará uma “coisa evidente”. É sina da qual o governo Temer não se livrará, pois sempre surgirá um militante para gritar o bordão e gerar o embaraço público. O comportamento social tende à simplificação, aqui se diferenciando dos pensadores, não se aplicando aos cidadãos a frase de Dante que Montaigne cita em Os Ensaios, a qual nos ensina: “não menos que saber, duvidar me agrada”.

Aqui existe outro aprendizado consagrado: na vida social, a repetição, ainda que absurda, acaba aprofundando suas raízes e a vasta maioria dos cidadãos prefere viver sob argumentos dúbios, ou até falsos, a seguir sob incertezas. Se a sintaxe do “golpe” é insustentável, pouco importa, pois é preferível viver em acordo com algum catecismo, qualquer que seja, porque “a alma que não tem objetivo estabelecido se perde”. E com aguda percepção Montaigne ainda insistiu sobre a leveza das decisões humanas, segundo as quais “é preciso tudo explorar e comprar de cada um segundo sua mercadoria, pois em casa tudo serve; e até a tolice e a fraqueza alheia o instruirão”. E assim, infelizmente, “todos nós estamos fechados e encolhidos em nós mesmos e temos a visão limitada ao comprimento de nosso nariz”. O comportamento dos indivíduos, dessa forma, acaba sendo equívoco e sujeito a erros, pois “é em meio de brumas e às apalpadelas que somos levados ao conhecimento da maioria das coisas”.

Encurralado pelos acontecimentos, o campo petista precisa da verborragia do “golpe” para não desaparecer. Sua ambição é a conquista do poder e se se curvar deixará de ser um partido político. Por isso a vitimização servirá tanto à biografia de Dilma como ao partido, segmentando o mundo da política, aos olhos dos cidadãos, entre os “golpistas” e os “perseguidos” petistas. E na política, binômios simplificadores sempre são mais promissores.

É uma fábula pobre, mas em ambiente rebaixado como o nosso será suficiente e talvez em 2018 alguns efeitos do arranjo terminológico já possam ser colhidos. Afinal, como destacou o filósofo das terras de Montaigne, em tais contextos os escrúpulos não contam, porque “quem opõe o custo ao fruto da virtude, este é, decerto, bem indigno de sua companhia e não conhece suas graças nem seu bom uso”. Ao campo petista não interessará, nesta conjuntura, “que sua consciência e sua virtude reluzam em suas palavras, e tenham apenas a razão como guia”. A mentira, esta, sim, tem sido mais produtiva em seus resultados.

Qual será o preço da farsa ora em curso, seja a artimanha do Senado ou o delírio do golpe? Não sabemos, mas novamente o genial pensador nos ensinou: “A maldade absorve a maior parte de seu próprio veneno e envenena-se (…), pois a razão apaga as outras tristezas e dores, mas engendra a do arrependimento, que é mais grave, uma vez que nasce no interior, como o frio e o quente das febres”.
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*Sociólogo e pesquisador em ciências sociais.

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